Anjo de Si Mesmo…( Falando de Depressão)

Eu olhava no espelho e via outra mulher. Na verdade não era outra, mas também não era a mesma. Não era mais aquela da foto que estava pregada na porta da geladeira, com um brilho inocente no olhar e o sorriso auto suficiente de mulher independente e bem resolvida.
E apenas um ano me separava dela!
Também não era mais aquela rota e amarrotada criatura que vivia sem viver, com olhar embrumado e olheiras profundas, oca de alegria, murcha de energia, emudecida pela total falta de ganas de expressar em palavras qualquer sentido para a vida.
Agora, dia após dia, o que via no espelho era uma mulher que começava a experimentar uma nova forma de ver o mundo e de relacionar-se com ele. Agora os olhos no espelho eram mansos, doces, condescendentes. Parecia-me que era mais humana, mais real e verdadeira com meus sentimentos, meus sonhos, meus desejos.
Uma das transformações que percebi em mim foi que eu não corria mais atrás do tempo, andava mais lentamente, fazia as coisas mais simples ou mais complexas com mais intensidade e consciência, quero dizer, não mecanicamente como antes de adoecer, nem com tanta tensão.
Deixei de explorar-me e passei a realizar com calma e tranquilidade aquilo que o dia e minhas forças me permitiam.
Não mais assumia mil e uma responsabilidades, nem compromissos com prazos impossíveis ou metas inalcançáveis.
Deixei de ser escrava de minha auto-crítica e de meu perfeccionismo.
Permiti-me ser também o anjo de mim mesma.
Exigia menos de mim e então descobria que o dia era mais produtivo e saboroso.
Descobri naqueles nove meses de tratamento que precisar não diminui ninguém, muito ao contrário. Ajuda a crescer. Precisar é uma aula de humildade.
Clarice Lispector disse que “a solidão é não precisar”. E que “não precisar deixa um homem muito só, todo só.”
Para mim é a mais pura verdade.
Não só aceitei a ajuda desinteressada daqueles que me deram apoio sem que eu o pedisse formalmente, como também aprendi a pedir.
Saber receber é uma virtude. Nem todos sabem. Os muito independentes e auto suficientes não sabem receber. Sentem-se até mesmo ofendidos quando alguém tenta ajudá-los.
E saber pedir?
Ah… isso é uma violência para os solitários.
Além de acreditar que “não precisam”, quando descobrem que isso é falso, trocam de crença para “não quero incomodar ninguém com meus problemas!”
Mas é lindo aprender a pedir. Difícil, mas lindo.
Pedi companhia, pedi paciência, pedi colaboração… pedi o que achava que precisava.
Nem sempre fui atendida, é verdade. Algumas pessoas, inclusive dentro de minha própria família, simplesmente não compreenderam nunca o que estava se passando comigo. E justamente porque era comigo.
A rota e amarrotada criatura não combinava com a imagem que sempre tiveram de mim e talvez por isso nunca conseguiram vê-la… Continuavam vendo-me como lhes parecia que eu era. Acreditavam que a melhor “ajuda” era não admitir minha doença, minha mudança, minhas novas e, para eles, inacreditáveis necessidades.
Alguns chegaram ao ponto de criticar a medicação dizendo que eu não estava louca e só quem estava doido precisava desses remédios.
Acabei entendendo que eles também não tinham culpa disso.
Paguei todos os preços pela desorganização em que havia transformado a minha vida. Para acertar todas as dívidas, tive que fazer muitas mudanças, desfazer-me de muitas coisas, desprender-me de algumas pessoas e aproximar-me mais de outras.
Recebi muitíssima ajuda nesses momentos e finalmente entendi que saber receber também é dar. Porque a gente está devolvendo amor, confiança, respeito. E isso também faz feliz aos nossos anjos.
Tomei algumas decisões muito importantes naqueles meses: preservar-me mais do stress do “mundo moderno”, escolher melhor as pessoas com quem trocar afeto, retomar meus sonhos mais profundos, cuidar mais de mim aceitando e respeitando minhas limitações, não correr atrás de um futuro idealizado, nem pessoal nem profissional mas, “passo à passo”, ir construindo um presente mais saudável, mais tranquilo e feliz.
Aproveito a oportunidade para dizer às pessoas que sofrem algum tipo de depressão que tirem suas máscaras e peçam ajuda, ou apenas aceitem que seus anjos se aproximem. Eles estão aí por perto…
Não se escondam mais… não lutem sozinhos. Não tenham vergonha de assumir seriamente um tratamento para não serem taxados de “maluquinhos”, “pobrezinhos”, “coitadinhos”. O sofrimento crônico de adiar uma decisão de curar-se não vale a pena.
Não me envergonho de contar o que passei porque considero que, apesar de terrível, foi uma imensa aprendizagem. Renasci melhor. E não sou eu apenas que pensa assim.
Também a experiência de perder a Princesa, minha mãe, vítima da Síndrome de Alzheimer, apenas dois anos depois, mostrou-me muito cruamente e cruelmente que valores são realmente importantes na vida: a saúde mental e física, a paz de espírito e o amor.
O resto é resto.
……………………
Ps: Espero ter respondido com este post os maravilhosos comentários que recebi nos anteriores. E, talvez, ter ajudado alguns a encontrar um fio de luz dentro de suas penumbras.

Categorias: Cicatrizes da Alma, Corpo&Alma de Mulher, Pensando Alto | Tags: | 23 Comentários

Navegação de Posts

23 opiniões sobre “Anjo de Si Mesmo…( Falando de Depressão)

  1. anlene

    oi guapa, que coisa mais bonita de texto, de experiência, quanta sabedoria e sensibilidade! beijocas saudosas, anlene

  2. Nora querida,
    Vc literalmente me faz viajar. Ontem, depois de ler seu comentário fui até Málaga cantarolando: “Il mio amore è nato a Málaga, Málaga
    In quella casa dal patio antico quante dolcezze ti ho sussurrato…”
    Hoje viajo aqui, com seu post, suas palavras, pensamentos, sua cura…
    Vc me fez lembrar um livro: “O vício da perfeição” (Marion Woodman).
    Qta lucidez a sua!
    Tomara, eu repito, que você encontre anjos, sempre.
    Tomara possamos nos ver na próxima Flip, ou em Málaga, quem sabe?
    Um beijo muito carinhoso.

  3. Outro lindo post. Transmite uma paz gostosa, uma serenidade boa.
    bjnhos

  4. LINDO LINDO LINDO, Norinha! de perto, ninguem e’ normal… nunca sofri de depressao, mas tenho meus demonios sobre os quais falerei em breve…
    Saude mental e’ tudo na vida e as vezes nos deixamos contaminar por pessoas mesquinhas e venenosas… fuja delas, amiga!
    Um beijo enorme!

  5. O grande equilíbrio é a gente aceitar as limitações e não exigir de si mesmo mais que podemos. MAs vivemos numa sociedade que nos exige a cada instante que sejamos sempre melhores que tudo e todos. Não há coisa melhor do que viver seu próprio tamanho. E sabes porquê? Veja o exemplo das nossas mães: tudo se apaga, só resta o nosso verdadeiro tamanho. bjs

  6. Notável todo o teu trabalho autobiográfico.
    Superiormente escrito, exprimindo os estados de espírito durante esse período de forma clara e impressiva, é de leitura acessível e absorvente.
    Julgo que o que escreveste poderá ajudar algumas pessoas.
    Poderia ajudar muitas mais se fosse divulgado como merecia.
    Talvez o venha a ser. Espero que o seja.
    Jinhos, muitos

  7. Ser anjo de si mesmo. É isso sim, Nora. Vc resumiu numa frase o que se leva, às vezes, toda uma vida para perceber. E tornar a vida mais simples, mais tranquila e mais feliz.
    Um beijo grande.

  8. É verdade ” o resto é o resto”. bj laura

  9. volto par te dizer que tenho enorme admiração por vc, pela coragem em se desnudar com tanta franqueza. Muito especial, vc é especial, moça. bj laura

  10. Que maravilha !
    Anjo é você !
    Há dias, talvez meses, consta na minha lista de favoritos o endereço do seu blog, que eu nem sei bem de onde tirei, mas li talvez uma frase e me interessei. Deixei ali para quando tivesse um pouco de calma e tempo para saborear com cuidado.
    Hoje, quando vivo uma das fases mais difíceis da minha vida e sérias desconfianças de que tenho depressão, encontro nas tuas palavras esperança, luz, motivação e um pouco mais de coragem para tentar sair desse buraco sem fundo.
    Para uma pessoa como você, o mínimo que eu podia fazer é isso: párar por um instante e dizer que hoje você foi um anjo na minha vida !!!
    Tudo de bom !

  11. É sempre um prazer tão grande vir aqui e ler seus post, queria ser capaz de escrever abertamente dobre mim, expressas meus medos, aflições, meu não saber o que fazer e por aí vai… acho que ainda me sinto esse ser dono de mim, sabe? sei la… tenho muito a crescer…
    Beijos grandes e thanks por dividir essa vivência conosco

  12. Nora, venho te visitar por indicação da Laura. Vejo que cheguei justamente em um momento especial, onde vc se mostra da maneira mais verdadeira possível. Também já tive uma crise forte de depressão, minha família não sabia como me ajudar, não entendia que me falta energia para fazer coisas mínimas. Mas aprendi, assim como vc, a valorizar a saúde, paz e amor. Sem estas coisas não somos nada! Voltarei mais vezes. Um abraço e mta sorte!

  13. É com muito orgulho e prazer que aqui chego graças a indicação de uma colega. tenho motivos para aplaudir seu texto, Nora, e dizer que além de muito bem escrito, é genuinamente claro, verdadeiro, e pode trazer uma luz a muitos e muitos que estão passando de uma forma ou outra por situação semelhante. voltarei sempre, e linkarei no meu blog. Abraços de Luz!

  14. Nora, continuo à deriva…ainda hj comprei na feira do livro “CHOQUE MENTAL” (Última saída antes do abismo) na busca de achar algo que me ajude a sobreviver, mas tudo me deixa vazia…nem um especialista encontro para consulta porque todos estão de férias e só daqui a meses posso ser atendida. Amiga,
    não é assim tão fácil, sair do túnel estreito e escuro…
    Beijinhos

  15. Nora, como cristão estou acostumado com esse dilema. O cristianismo parte da premissa de que temos um sério e mortal problema, a que chamamos pecado, e que não podemos resolver esse problema. Precisamos de ajuda. Aí é que a porca torce o rabo, a coisa mais difícil do mundo é sujeitar-se à operação de um terceiro.
    Mudando de assunto, é a primeira vez que acesso teu blog aqui de casa e pela primeira vez ouvi a música de fundo. Uma beleuza!
    Vc me deixou ansioso pelos 40, quem diria?

  16. Nora, fico pasma com a sua sensibilidade em narrar esses seus momentos. Lindo, doce e especial. Beijocas

  17. Nora, que texto lindo, impressivo, permeado pela sensibilidade que lhe é característica.
    Depois de tamanho enternecimento com tuas palavras, só o que eu tenho a dizer é: amo a pessoa que você é, minha querida amiga.
    Tenha uma semana de paz.
    Beijo carinhoso.

  18. adelaide

    Nora ando meio longe do pc por causa das viagens. Volto pro Rio no fim da semana. A finalização dos últimos posts não podia ser melhor. Beijo grande.

  19. Provavelmente ainda não reconhecemos algumas doenças como ocorreu com as que recentemente tiveram este reconhecimento; antes eram tratadas como frescura, fraqueza, falta de força de vontade, etc.
    Também deixamos de tratar como doenças o que não é, como a opção sexual de cada um.
    É fácil tratar cada coisa de acordo com o convencional; o difícil é enfrentar situações fora dos paradigmas, daí a importância do diálogo, da paciência, da compreensão e do amor no trato cotidiano, seja em condições de “normalidade” ou de “excepcionalidade”.
    Eu considero muito importante o que você vem escrevendo; outro dia indiquei a leitura de sua postagem anterior a uma querida amiga com um caso de depressão na família, ela me disse que imprimiu o texto para mostrá-lo a familiares.

  20. passei por uma “fervura” braba e hoje sinto-me grata, pois depois disso me tornei uma pessoa bem melhor. hoje entendo bem o sentimento AMOR. foi preciso doer pra enxergar muitas coisas. inclusive que, sentir-se grato é milagroso!
    agradecida por compartilhar, nora.
    beijos e que a vida lhe trate bem!

  21. Nora…é a primeira vez que vejo seu blog e logo deparo com este texto tão bom. Seu relato é lindo e tocante. Espero que muitas pessoas leiam, pois mesmo as que nunca tiveram uma crise de depressão, têm – altas! – chances de conhecer ou mesmo conviver com quem passe por uma.
    Espero que seu tsunami interno já tenha passado. Eu tive uma crise que, graças à medicina e à ajuda de pessoas especialíssimas também, foi superada.
    Um beijo.

  22. Amiga Nora, acredita que busco por um especialista e não encontro, todos estão ocupados e só podem ver-me daqui a meses. Ainda ontem sofri uma crise de fobia social na rua quando passeava sozinha. Que desespero…
    querer carregar nun botão e morrer naquele instante, ou desatar a correr e esconder-me onde ninguém me visse, desejo de evaporar no ar…É uma dor, pior
    que as dores físicas. Nunca sei quando uma fobia vai atacar, nem onde e isso deixa-me em pânico.
    Beijinhos

  23. Criei espaços como bem sentiu Fernando Pessoa a ter seus heterônimos.Este que deixei levará aos outros.
    No coração-colmeia coloquei um link que vem direto para teu espaço, por que além do cuidado com as reflexões,senti a percepção de um mundo que responde e se nega. Uma luz que precisa vir à tona.
    Prazer,
    Patrícia

Deixar mensagem para Tânia Barros Cancelar resposta