No dia primeiro de Agosto de 2001 a Princesa se foi.
Fazem já quatro anos. Ainda sinto seu perfume quando minha casa se enche de rosas e floresce o jasmim…
Me presenteia com sonhos onde percebo a maciez de suas mãos, sempre um pouco frias, pousadas em minha face. Neles, sorri para mim como antes de perder a alma para o cruel Alzheimer.
Encontrei um poema de Ferreira Gullar que diz, talvez, o que ela me diria naqueles terríveis meses de silêncio.
UM INSTANTE
Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente.
Ferreira Gullar
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Outro dia, em Segóvia, também ganhei de presente do Dia das Mães uma carícia da mão macia e fria da minha Princesa.
Deixo aqui a história, para que não se perca nos arquivos do Cicatrizes da Mirada.
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Uma História de Fantasmas.
A senhora deveria estar perto dos setenta anos, ou mais ou menos, não sei bem ao certo – são tão arrumadinhas as senhoras desta idade! – e estava parada no meio da rua, com uma expressão desorientada, gemendo baixinho…
Vestia-se bem, com seu belo lenço colorido enrolado no pescoço, um abrigo leve pendurado entre as mãos e olhos molhados de quem está prestes a explodir em prantos…
Minha filha notou-a antes de mim e nos aproximamos para ver se podíamos ajudá-la.
Ela disse-nos num fiozinho desolado de voz “quitaran mi bolso!”
Perguntei-lhe onde, quando, como? Mas ela só repetia e repetia como um disco arranhado: “Quitaran mi bolso… Ai, quitaran mi bolso, hija mía.”
Quando aproximei minha mão de seu ombro para consolá-la ela me abraçou pela cintura repetindo seu refrão: “Quitaran mi bolso…quitaran mi bolso, hija mía.”
– Calma, tranquila. Pedi, querendo não assustá-la ainda mais com meu sotaque de estrangeira. Diga-me como aconteceu e vamos ver se posso ajudá-la.
( Não sabia como, mas não podia deixá-la ali como se não a tivesse visto!)
Minha filha também tentava tranquilizá-la dizendo que em Segóvia não há esse tipo de “assalto”. Ela poderia ter deixado a bolsa em alguma loja onde houvesse estado antes. Mas ela, pobrezinha, tremia tanto… Não sabia dizer onde havia estado e não havia se dado conta da falta da bolsa até a hora que nos encontramos. Mas trocou o estribilho e começou a enumerar o que havia dentro da bolsa desaparecida.
-“Dez euros…todo meu dinheiro, e as chaves de casa… ai, e as fotos de meus sobrinhos…ai, hija mía, quitaran mi bolso!”
Aquela voz me trouxe lembranças queridas… e eu quase começava a chorar antes dela…
Começamos a caminhar abraçadas pela rua, fazendo o caminho de volta para ver se ela lembrava onde havia estado. Na curva seguinte, ela exclamou em tom forte e aliviado “Maruja!”
Pensei: “Pronto! Encontramos alguma amiga que vai poder ajudar-nos.”
Era realmente uma amiga dela e estava com a bolsa da nossa querida e desconsolada senhora pendurada na mão como um troféu.
Abraçaram-se contentes.
A “nossa” espanholinha assustada estava rubra como uma cereja, um tanto envergonhada por ter sido pilhada numa travessura de sua memória. Mas sorria feliz com ” su bolso” outra vez na mão, e seu dinheiro , e as fotos de seus sobrinhos, e as chaves de sua casa…
Sorri de volta para ela, arrepiada e com os olhos molhados por lágrimas de uma saudade com outro nome, outro sotaque e outros tempos…
Pediu-me um beijo agradecida e eu a beijei mais agradecida do que ela.
Deu-me um bem estar que fazia tempo eu não sentia…
Madre mía…