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Para que no me olvides (2)…

Para que no me olvides é um livro forte. Muito forte.
E, apesar de tê-lo abandonado à própria sorte num banco de uma estação de trem, não pude esquecê-lo.
Dia após dia eu recordava Blanca como se ela fosse uma amiga que precisava ser escutada e a quem eu, inadvertidamente, havia traído.
Escutar… estranha palavra em se tratando de Blanca.
Ela não podia falar. Também não podia escrever, nem pintar ou desenhar, sequer usar a mímica para fazer-se compreender. Apenas a expressão de seus olhos deixava transparecer os seus sentimentos. Nos comunicávamos por telepatia. Ela pensava e eu entendia. E Marcela Serrano, a autora, era o veículo pelo qual passavam suas emoções antes de chegar a mim. E já me tocou um ponto sensível quando começou sua história. Primeiro com esta frase:
“A mulher fugiu para a solidão, onde tinha um lugar preparado por Deus.” Apocalipse 12, versículos 6-7
E depois com este prólogo:
“Minha avó me ensinou a ler. Minha avó me apresentou os livros e me transmitiu seu amor por eles. Não tive eleição, foi sua herança.
Ela me disse me disse que com os livros eu nunca estaria só. Me ensinou a cuidar dos meus olhos apoderando-me deles como o lugar mais valioso, o mais nítido.
Me explicou que se alguma vez falhassem os ouvidos, não seria tão grave, pouco me perderia, tudo o que valia escutar se havia escrito e o resgataria com meus olhos.
Me disse que se alguma vez falhasse a voz, não seria o fim. Receberia o som exterior sem devolvê-lo e ninguém sentiria falta, menos eu. Estavam as palavras para ser executadas: por meus ouvidos as que já estavam concebidas, por minhas mãos as que quisesse inventar.
Ao final, sem mencionar sequer outras carências como o olfato ou o gosto, minha avó me disse que ignorasse a surdez y a mudez se chegassem a acometer-me, que a única falta total era a cegueira.
Que cuidasse de meus olhos. Só com eles poderia ler. Só eles me salvariam da solidão.”

Discordei veementemente dessa avó. Como viver sem a música? Seguramente eu sofreria imensamente!
Até que entrei na vida de Blanca e duvidei de todas as minhas certezas.
Sua estranha enfermidade lhe impedia de articular a linguagem. Não era uma mudez da voz. Era afasia com o agravante da alexia, agrafia e acalculia. Isso significava uma incapacidade na expressão da linguagem em qualquer forma. Era como se seu cérebro tivesse cortado qualquer possibilidade de comunicação com o mundo exterior. Entretanto, a linguagem interna permanecia, a compreensão de tudo que escutava permanecia. Entendia o que falavam com ela, mas era incapaz de responder. Sabia a resposta, mas esta não podia sair de dentro dela. Estava absolutamente sozinha com as suas idéias e os seus sentimentos.
Que coisa tão triste! Nas imensas horas do dia, só podia refletir ou recordar. Nem livros, nem agulhas de croché, nem tintas, nem palavras cruzadas, nem costuras, nem receitas de cozinha, nem nada.
Estava condenada a uma prisão sem grades e sem cadeados. Uma prisão branca e invisível.
Pois sim. Cheia de horror entrei em seu mundo pelas mágicas mãos desta maravilhosa escritora chilena e me deslumbrei. Senti sua dor, suas dúvidas, seu terror, sua impotência. Acompanhei sua vida, seus amores, suas angústias. Conheci suas ânsias e também sua fragilidade. Conheci Victoria, Sofia e também O Gringo e a história escura do Chile. Tudo através de sua memória.

E vai que eu, distraída por um fim de tarde cheio de anônimos, esqueçi Blanca sobre um banco de uma estação de trem de Madrid.
Consegui calá-la um tanto mais, justo quando ela estava quase terminando sua história?
Como pude?
Uma semana depois fui à Madrid e comprei outro livro. Fantasiei que quando o abrisse, a história, como numa mágica feliz, se modificaria.
Mas não. Era a mesma Marcela Serrano invisível, transmitindo ao meu mundo o silêncio dolorido e cheio de significados de Blanca.
Era a mesma Blanca e sua incomensurável solidão. Ela sempre estará ali dentro, fazendo a gente a refletir sobre a vida, sobre a fragilidade da vida. Nós é que mudamos depois de encontrá-la.
Espero que outra amiga a tenha encontrado…

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El Albergue de Las Mujeres Tristes…


Li este livro com uma sensação de estar vendo um álbum de fotografias. Um álbum estranho, onírico, onde estavam pregadas as caras, minha e de muitas de minhas amigas, cujos nomes estavam trocados pelos dos personagens criados por Marcela Serrano*, mas que possuíam as mesmas expressões de susto, desesperança e tristeza nos olhos, o mesmo ricto amargo nos cantos da boca, as mesmas rugas de cansaço por trás de sorrisos diplomáticos. Em muitos momentos da narrativa perdi-me em longos devaneios, retomando imagens, sentimentos, medos e questionamentos vindos dos recônditos mais profundos de minha alma. Recordações que eu acreditava desaparecidas na minha larga história de mulher “independente ” e triste no final do século XX e início do XXI.
O livro me chegou às mãos meio por acaso. Eu estava querendo uma novela suave, para ler nas férias. Meu marido foi na estante do fundo do corredor e o escolheu dizendo que sabia que eu iria gostar. Aceitei a sugestão de imediato só pelo título, mesmo sabendo que apesar der ser uma novela pequena, não seria assim tão leve… A cicatriz que levo na alma é grande e tem voz própria quando o tema é tristeza. Nunca me esquecerei dos tempos em que ela quase me matou.
Viajei dentro do ônibus com Floreana – personagem principal da novela – até o albergue da ilha de Chiloé, no sul do Chile, com um frisson dentro do peito, assim como sabendo exatamente o que era buscar um lugar muito distante de tudo como única possibilidade para sobreviver à dor, ao medo, ao desencontro consigo mesma.
Ali, ela e eu nos encontramos com as outras. Ela com uma atriz, uma milionária, uma bordadeira, uma artesana de bonecas, uma psiquiatra, uma economista, entre outras mulheres do albergue dispostas a deixarem-se curar, a compartir tarefas e histórias por três meses. Eu, com uma artesana de bijuterias, uma médica, uma secretária, uma psicóloga, uma advogada, uma dona-de-casa, uma administradora, entre outras mais.
Cada uma das mulheres do albergue levava consigo seus próprios personagens, agarrados como crostas às suas cicatrizes…
Eu e as minhas amigas levávamos também os nossos…
Claro, minha Constanza não era economista, nem se chamava Constanza, mas era tão parecida com ela que se confundiam as duas.Tanto que eu podia usar a cara de uma ou de outra quando as escutava, fosse no livro ou na minha lembrança.
Na verdade, os relatos daquelas mulheres nos desnudavam a todas e, por deixarem assim expostas as suas feridas, estas já não eram apenas suas, já não eram feridas individuais… eram as chagas de todas as mulheres do planeta, vivessem em Santiago do Chile ou em São Paulo, em Nova York ou em Madrid, estivessem no mercado laboral ou em suas casas.
Muitas vezes eu resisti a fechar o livro e ir-me porque sabia o quanto de mim ficaria preso entre suas páginas. Outras resisti a abri-lo para não encontrar-me.
Mas não resisti a continuar a leitura… e continuar me encontrando com todas elas, ou ainda outras já desaparecidas como a Princesa, minha mãe, ou minha bela amiga de infância que morreu de câncer, ou outras amigas perdidas num mundo de desamor e traição, cansaço e medo.
A autora também faz um contraponto a esses relatos femininos com a presença de dois personagens masculinos: um médico e um escritor de contos eróticos. Ambos entraram na vida de Floreana ( e nas nossas ) com suas teses sobre as mulheres e sobre o papel masculino no mundo contemporâneo, suas dúvidas, seus temores, seus desconcertos.

As questões sobre o amor, o sexo, a amizade, a família e o trabalho são inesgotáveis dentro da literatura. E Marcela Serrano*, esta bela escritora chilena as reune nesta novela levantando ainda mais poeira sobre esses temas.
Para onde vai o relacionamento amoroso com o deslocamento das mulheres rumo à independência financeira e emocional?
O que sentem as mulheres quando percebem que o preço a pagar pela independência e a liberdade de seus desejos e ações quase sempre é a solidão?
O que sentem os homens? Porque eles têm medo de amar essas novas mulheres?

Bom, só refletir sobre isso já faz de El Albergue de Las Mujeres Tristes um livro para ser lido, discutido, conversado. Sugiro que o leiam. Homens e mulheres.
Ho ho… voltei bem, heim?!
* Marcela Serrano

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