Arquivo do mês: junho 2005

Um Anjo Torto no Espelho…(Falando de Depressão )

Ela disse que já fazia um tempo que pensava em mim. Acordava pensando, almoçava pensando, depois esquecia e voltava a pensar antes de dormir…
A cada amanhecer se prometia procurar-me, mas a promessa perdia-se no decorrer dos afazeres do cotidiano. Quando finalmente ligou e escutou a minha voz já sabia que algo não estava bem. Disse-me segura e firme: “Espere-me. Estou chegando.”
Pois sim…esperei ali mesmo, quase sem mover-me. Estava exausta!
Em menos de 20 minutos ela tocava a campainha da porta com pão, queijo e salada.
E foi assim que a primeira mão- ou asa, porque parece que estamos falando de anjos – se estendeu para ajudar-me a encontrar uma fresta naquela bruma que envolvia minha alma.
Durante o almoço improvisado, contou-me sua experiência de morte. A cada palavra sua, eu me reconhecia. Era como se ela fosse minha imagem no espelho.
Palavras que pareciam só minhas estavam na sua boca. Expressões como “alma cansada” ,”falta de luz interior”, “silencios recolhidos”, “pensamentos confusos”, saiam de uma boca que não era a minha, mas que adivinhava meu pulsar, dava nomes a tudo que eu sentia.

Que estava fazendo ali aquela figura no espelho? De quem era mesmo aquela boca que se movia se eu sabia que estava muda e encolhida, assustada que pudesse ler assim as minhas entranhas?
Eu olhava para ela e me via. Era sua ou minha a boca trêmula, os olhos marejados, a voz vagarosa que contava o que era sentir vontade de desaparecer sem deixar vestígios, dissolver-se no éter, não dar qualquer explicação a ninguém? Não a tinha, mesmo!
Ninguém a pediria até que fosse já muito tarde. E então, quem sabe criariam as suas próprias versões? Nenhuma delas teria mais qualquer importância.
Ela falava e eu assentia com a cabeça, muda, profundamente agradecida que sua boca fizesse o papel da minha.
Quando ela limpou a mesa e fez o café, olhou-me como se eu fosse uma foto antiga de um álbum de seu passado. E era…
Então, com muita calma disse-me que eu era ela, só que há um ano atrás. Agora, já estava quase curada.
Explicou-me por alto o processo químico da depressão. Disse que eu não tinha que tentar sair sozinha dessa armadilha, os riscos eram altos demais. O desgaste de energia era excessivo para quem já estava sem forças. Pediu-me para que me deixasse ser ajudada.
Sim! Por favor, sim…
Telefonamos para meu médico e marcamos a consulta para o mesmo dia. Ela disse que era urgente e ele acreditou. Eu também.
Estava entregue às suas asas…
E esse foi o primeiro passo para o processo de ressurreição. Um pequeno grande passo.
Muitas vezes me perguntei como e porque uma pessoa que eu não via há tanto tempo conectou-se comigo à distância, “sentiu” que precisava saber de mim. E justamente uma pessoa que sabia o que dizer-me porque já havia vivido algo semelhante.
Ela foi o primeiro dos muitos anjos da guarda que me cuidaram por aqueles tempos.
Saber o que era depressão de verdade e por experiência própria fez muita diferença. Foi muito importante…
Mas só descobri isso depois de um tempo, quando espalhei a notícia que estava doente.
O mundo não está preparado para receber essa notícia, descobri rapidamente. O mundo pode aceitar que você pegue uma virose ou uma hepatite e precise de um tempo para recuperar-se. Até pode conviver facilmente com uma pressão alta ou uma diabete, que talvez vá necessitar uma medicação específica para toda a vida. Normal. Que bom poder contar com a medicina avançada, não é?
Mas a depressão não é vista da mesma maneira. Ela é percebida como uma doença de fracos, um comportamento histérico para chamar a atenção, uma maneira preguiçosa de ser ou uma forma de “chantagem emocional” para não assumir as responsabilidades da vida moderna.
Além desse preconceito, a maioria das pessoas não sabe o que é a verdadeira depressão. Confunde-a com uma tristeza passageira ou uma sensibilidade exacerbada de TPM, algo que pode ser freado por um Lexotan, um Frontal ou uma noitada de euforia regada a uns drinques. A maioria não sabe do componente orgânico da doença, do desequilíbrio químico no organismo. Querem uma explicação psicológica e não bioquímica. Buscam um motivo externo, uma grande tragédia.
Nem sempre esse grande desencadeador existe.
O meu mundo também pensava assim. E as primeiras reações estavam baseadas nessa ignorância. Alguns me olhavam com pena e me incentivavam a tirar férias e viajar. Outros me diziam que eu tinha que sair de casa, conhecer pessoas novas, procurar me divertir, não me entregar. Ainda algum aconselhou-me a arranjar um “macho” para uma boa trepada. “Cura certeira.” Garantiu.
Descupem-me a baixaria, mas os termos foram mesmo esses.
Eu nem respondia. Sorria e mudávamos de assunto. Era um tema incômodo para elas e precisavam achar uma solução imediata. Melhor que acreditassem que aceitar os seus conselhos era o melhor que eu podia fazer para curar-me.
E se não fosse assim, é que eu queria mesmo “fazer o papel de vítima” e ser a “coitadinha”. Mais uma frustrada para o rol.
Outra descoberta é que o mundo não tem tempo para cuidar da gente. Todo mundo está sempre muito ocupado e cheio de compromissos. As agendas das pessoas estão repletas de afazeres e o que sobra é para o lazer. Como usar esse tempo com uma pessoa apagada, sem brilho, sem vontade, sem prazer, cheia de pensamentos negativos? E ainda por cima que não aceita os seus conselhos tão simples e maravilhosos!
Argh! Toc-toc…
Se você estivesse acidentada, operada, realmente doente, sim. Claro, amigo é para essas coisas também.
Mas depressão? Melhor te apresentar um amigo do amigo do ex marido e sair para dançar… eu, heim?! Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, mulher!

Algumas amigas quando souberam que eu estava deprimida, me telefonaram e me deram um senhor “puxão de orelha”.
Mais ou menos assim:
“O que é isso? Uma mulher como você??? Não admito que tendo sido sempre tão forte, tão cheia de vida, inteligente, bonita, etc e tal diga-me que está deprimida! Isso não pode ser! Eu não posso aceitar isso de você?”
Como assim? Por que eu tinha que ser um modelo para alguém?
Ainda bem que algumas delas não perguntaram nada, não aconselharam nada. Simplesmente fizeram algo.
Nos primeiros dias da medicação, não vi qualquer alteração para melhor. Pelo contrário, sentia-me muito pior! No décimo dia parei de tomar o remédio sem avisar meu médico!
Falha nossa. Nem ele avisou-me que os resultados só apareceriam partir de 15 ou 20 dias, nem eu o chamei para avisar que estava pior.
Nesse dia telefonei para uma das minhas melhores amigas e perguntei o que ela ia fazer aquele final de tarde. Ela respondeu que estava no carro indo para uma reunião de trabalho. Pedi-lhe que me ligasse quando a reunião terminasse e desliguei. Dez minutos depois ela estava diante de minha porta, tirando a jaqueta de trabalho e os sapatos, indo para cozinha fazer um café…enquanto eu tomava uma ducha que lavasse as setecentas e trinta e duas mil lágrimas que salgavam o meu corpo.
Passou meia hora escutando-me. E antes de sair para a sua reunião, avisou-me que viria mais tarde. Para dormir.
Oh! belo anjo da guarda!
Pude suportar aquele por-de-sol vermelho-impossível porque sabia que ela voltaria. Naquela tarde aquela amiga se transformou para sempre na melhor das melhores amigas. E graças a Deus pude retribuir seu afeto e cuidado em outros momentos de nossas vidas, em que a necessitada foi ela.
Voltou muitas vezes com um filme, queijo e vinho. Ou apenas para convidar-me a fazer o supermercado. Ou passava logo pela manhã cedo só para tomar um café antes de ir trabalhar. Ela simplesmente ficou por ali, cercando-me, como se vivesse na porta da frente da minha casa desde sempre. Mais. Como uma irmã.
Como conseguiu que parecesse simples ter tanto tempo para mim?
Pois sim… ela ensinou-me uma lição inolvidável: “Quando uma amiga está precisando de ajuda porque está morrendo de tanta tristeza, jogue a “agenda” fora e escreva outra em que ela é a prioridade 1.”
Foi o que ela fez.
Voltei ao médico e iniciei outra medicação, prometendo telefonar a cada três ou quatro dias para dar-lhe um feedback dos resultados. Muitas vezes ele mesmo telefonava-me e conversávamos um pouco. Visitava-o frequentemente.
Tive muitas reações físicas no processo de ressurreição. Taquicardias, suores, diarréias incontroláveis no meio da rua, que me faziam voltar correndo para casa. Acho que eram defesas para não arriscar-me a sair da concha. Mas isso foi passando e passando, cada vez menos freqüentes e mais leves.
Ampliei minha coleção de anjos da guarda com minha cunhada, meu irmão – anjos antigos a quem eu amava à distância porque nunca tinha tempo para eles – e meu amigo francês, que convidou-me para trabalhar com ele num projeto de consultoria espetacular e que, finalmente, acordou minha motivação profissional, antes mergulhada num sono profundo.
Ressuscitar leva tempo… é tão manso como adoecer.
O antídoto para o veneno que impregna o corpo e a alma da gente está dentro das pilulazinhas minúsculas… mas para a recuperação total é preciso contar com a compreensão e o amor incondicional das pessoas que nos cercam.
Ressuscitar não é voltar a ser quem a gente era. Nunca mais seremos os mesmos.
A noção de profundidade dos sentimentos, a consciência plena do privilégio da vida, a total lucidez do que é felicidade são ganhos intrínsecos a quem escapa da morte.
A mudança de valores é profunda. O desprendimento, a compaixão, a tolerância, a paciência, a noção do que é liberdade, respeito por si mesmo e pelo outro… tudo ganha uma dimensão nova.
Parece que a gente fica uma pessoa melhor. Muito mais perto de ser o anjo ocasional de outros…
Depois de alguns anos, curada e profundamente transformada, despertei com a notícia de que um dos meus queridos anjos, contaminado pelo mesmo veneno, não teve a sorte que eu tive…
Sozinho e perdido na espessa bruma, corroído pela dor sem lugar e a tristeza sem nome, não conseguiu salvar-se.
Com um tiro no peito, quitou-se a vida.
Era o meu médico…
É verdade que resumi muitíssimo o que se passou desde a morte sem morte até a vida plena que vivo hoje em dia…
Mas o blog é apenas um caderno de notas e elas vão e voltam ao sabor da inspiração.
Quem sabe o que vou escrever da próxima vez?
Ps. Este post está dedicado com muito carinho aos meus anjos e também a Adelaide Amorim, Katia de Carli e Jussara Bellote. Cada uma delas por um motivo especial…
Elas o sabem.

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Enquanto Isso…No País do Não Faz de Conta…(Cap.12 )

Uma amiga querida do Brasil enviou-me essa mensagem bem humorada do L.F.Veríssimo.
Aproveitei para respondê-la aqui mesmo no blog. Assim vou ganhando tempo até escrever o resto da história das cicatrizes.
Conto de Fadas Para Mulheres do Século XXI
Era uma vez… numa terra muito distante… uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima que se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo estava de acordo com as conformidades ecológicas.
Então a rã pulou para o seu colo e disse:
– Linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e eu transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo.
A minha mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavarias as minhas roupas, criarias os nossos filhos e seríamos felizes para sempre…
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã à sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria e pensava…
Nem morta!
Luis Fernando Veríssimo
……………………..
Meus amigos, vos direi!
Fracassei como princesa…
Esse negócio de ser cheia de auto-estima levou o maior couro de outra coisinha chamada depressão e quando voltou a si já não tinha os mesmos valores, as mesmas ilusões. Inclusive ser linda perdeu o significado importante e passou a ser um reles detalhe, muito irrelevante.
Esse outro negócio de ser independente também cansou de fazer tudo sozinha, pagar tudo sozinha, sofrer tudo sozinha e resolveu mudar de nome para interdependente, que é muito mais maneiro, tá?
E, para dizer a verdade, nunca beijei um sapo que se transformasse em príncipe. Era tudo de mentirinha…
Os danados eram sapos mesmo e continuaram asquerosamente sapos, por mais que eu fingisse não ver.
O que já veio com carinha de príncipe e me fez uma proposta parecida (só não incluiu a mãe no pacote porque ela nunca concordaria em dividir seu rebento) era um Batman Forever. Tinha complexo de morcego. Adorava as noites e nunca chegava cedo em casa. E quando não saía, dormia e dormia.
Era cheio de segredos (nunca se sabia onde ele estava) e amava seu bat-móvel, sua bat-moticleta, sua bat-caverna, sua bat-prancha-de-winsurf e todos os seus bat-objetos mais do que as pessoas.
Só havia uma pessoa a quem ele amava mais do que seus bat-tudo: a si mesmo.(Isso nem a mãe sabia!)
Os condes e duques eram chatos e pernósticos. Não se conformavam em não serem príncipes.
Tinha até um que era vampiro. Juro! Sugava a energia de quem estivesse por perto. Esse quase me matou!
E os marqueses achavam que era humilhante que todos não se curvassem à sua passagem…
Como assim???
Ainda bem que fracassei. Ser princesa era um saco!
Que o diga Caroline de Mônaco, a princesa mais linda e menos feliz do planeta!
Decidi então deixar essa doideira de querer ser princesa e virar o que sempre fui, mas insistia em não querer ser: uma mulher comum.
Aí… encontrei um homem comum (nem Robin Wood, nem Batman, nem Robert Redford, nem Richard Gere, mas com olhos-de-mar-azul e um sorriso de derreter qualquer joelho ) que vivia do outro lado do lago, sabia lavar, passar e cozinhar porque morava sozinho numa cabana emprestada…
Nem sapo, nem príncipe, nem complexos de nobreza falida, nem fetiches por bat-objetos, exceto pelos livros – que devo confessar – compartilho.
Encontrei um homem que gosta das pessoas. E de mim. Finalmente um!
Aí, desde que estamos juntos estamos felizes…
E nem dizemos o “para sempre” que é pra não dar azar! Ho ho ho…
(Vai que existem mesmo as bruxas, fantasiadas de Barbies, loucas por uma maldadezinha!)
Lavamos, passamos, cozinhamos e cuidamos dos filhos (que já moram em outras paragens) com leveza e bom humor, porque ninguém aqui precisa de escravo.

Brincamos de sermos sapos nas tardes quentes de primavera-verão no lago azul perto da cabana ou de príncipes nas noites de lua cheia, vinhos, boa música e bons papos aqui mesmo no jardim.
Por sinal, nenhum um de nós dois gosta de perninha de rã à sautée, mas as paellas que ele sabe fazer são fenomenais!
Do conto de fadas para mulheres do século XXI fiquei só com… “Em um país muito distante…”
Mas… distante do quê mesmo?
Ah, tá certo…qualquer dia desses a gente pega o avião e vai beijar os amigos brasileiros.

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Viver … e Contar.

Não sei como agradecer os comentários deixados no post anterior. Acho que dizer obrigada é pouco.
Pensei que falar das Cicatrizes e como elas se produziram, além de gerar um bom assunto para conversar no blog, ajudaria algumas pessoas a identificarem sintomas seus, passados ou presentes.
Em vez de escrever sobre depressão usando um texto técnico, poético ou subjetivo, escolhi contar uma história. Esse é meu ponto forte.
Gostaria de saber fazer diferente e escrever como alguns blogueiros que eu visito e que admiro pela classe e estilo, mas não sei. Eu sei contar histórias.
Enquanto pensava em como expressar em palavras o que havia vivido, li alguns textos fortes sobre o mesmo assunto em outros blogs que me ajudaram muito. Excelentes posts, como o poema que li na Helô ou como o texto da Adelaide Amorim, que gentilmente concordou em que eu o utilizasse como ponto de apoio.
Cada um usa suas ferramentas. Eu usei as minhas.
Fácil não foi. Mas o difícil existe para ser superado.

Desvelar-me não constitui um problema para mim. Não mais.
Exige um tanto de coragem, é verdade. Mas esta eu herdei da Princesa, como disse num dos posts anteriores. E tenho meus filtros… nem tudo está escrito aqui.
Eu sei que a exposição pode, às vezes, trazer consequências desagradáveis. Entretanto, tive a sorte de que a esmagadora maioria dos que estiveram nesta página durante estes dois anos e pouco ( tanto os que deixaram seus comentários quanto os que calaram suas opiniões ) terem sido, no mínimo, educadas e maduras. Algumas delas já considero amigos, tal a atenção e afeto que expressam e que eu retribuo.
Também recebi inúmeros e-mails durante todo esse tempo. Alguns sentiram-se como se estivéssemos juntos, conversando no sofá da sala ou confortavelmente instalados na mesa da cozinha, tomando um café na caneca azul, esperando os biscoitos perfumados saírem do forno. E contaram-me também suas histórias.
Sobre o curto-cicuito, escreveram-me pedindo que continuasse o assunto, pois precisavam saber como sair de suas penumbras.
O mesmo aconteceu antes, com a minha história de amor em capítulos, que muitos acompanharam cheios de esperança renovada de que era possível sonhar e viver um amor de verdade, outros porque se divertiam, viam poesia ou simplesmente gostavam de minha forma de escrever.
Creio que o tema central do Língua de Mariposa é esse: cumplicidade de sentimentos. Sejam eles dolorosos, nostálgicos ou bem humorados.
Tento comparti-los com honestidade, transparência e boa vontade.
Escrever é meu vício.
“Viver Para Contar”, diz García Marquez.
“Confesso que Vivi”, disse Neruda
Não sou escritora, nem poeta… mas vivo.
E confesso que gosto de contar.
Com toda intensidade.

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E Por Falar Em Cicatrizes…( Falando de Depressão)

Adelaide disse assim:“Ela vem e senta nos teus movimentos… um peso branco que te trava todo e nem te dá vontade de morrer, razão pela qual você continua vivo, mas assim, a contragosto…
Aliás, ela é contragosto mais do que desgosto.”

E eu disse assim: “Morrer, o que se diz morrer mesmo, não morri. Mas morri assim mesmo.”

Enquanto contava a história dos encontros e desencontros que me trouxeram até aqui, mencionei algumas vezes um período de minha vida em que perdi-me de mim mesma.
Há algum tempo venho tentando escrever sobre isso.
Cortázar diz que ” é mais fácil falar de coisas tristes que das alegres” e que ” dos bons sentimentos nasce a má literatura… que a felicidade é somente de um, em troca a desgraça parece ser de todos”.
Não para mim. Escrever sobre esse mergulho no poço profundo da dor sem lugar e sem sentido foi muito difícil. Desvelar-me não. Já fiz isso muitas vezes. Mas, desvelar o estar escondida na penumbra da alma e não saber como encontrar de novo a luz, foi como bordear o precipício por onde se caiu…
Pois esse post pretende contar um pouco, só um pouco, o que foi esse curto-circuito na minha vida.
Acho que o texto publicado no Umbigo do Sonho deu-me um ponto de apoio, um fio condutor.
Há mais ou menos 8 anos atrás, nesta mesma galáxia (acho!), minha alma adoeceu.
Não sei bem como começou, mas fazendo um esforço de memória recordo um sono quase incontrolável em horários não muito comuns, um desânimo em relação ao trabalho, uma vontade de parar o mundo e descer…
Parecia impossível acompanhar a velocidade da vida e eu estava tão cansada!
Fui deixando algumas atividades… não me dava tempo ir, me exigiam uma energia que eu não tinha.
Depois, também não sei quando, uma tristeza sem nome foi se instalando, se insinuando por baixo da pele, transformando o sorriso em ação rara, apagando do olhar o brilho, freando os impulsos do prazer.
Eu tentava reagir. Buscava a companhia dos amigos de sempre. Mas, no meio do encontro, perguntava-me o que estava fazendo ali, que conversa era aquela, porque não ia para casa e ficava sozinha escutando música e lendo alguma coisa? “Para não me divertir, melhor não ir!”
Voltava para casa e não queria a música, nem o livro. Ligava a televisão e não via nada… deixava o telefone tocar mil e duas vezes sem atendê-lo.
Um dia saí de casa e deixei, sem perceber, a torneira do banheiro aberta. Eram épocas de racionamento de água e haviam horas certas para o abastecimento. Quando cheguei a casa estava inundada. Essa foi só a primeira vez…
Num outro, botei um pedaço de pizza para esquentar no forno, peguei a bolsa e saí de casa. Quando voltei, a cozinha era um verdadeiro inferno pela fumaça e pelo calor que vinha do fogão. Os azulejos já estavam negros na parede atrás dele. Não sei como o incêndio não havia ainda começado!
Depois,deixei o computador ligado, o ferro de passar, a janela da sala aberta, pronta para que qualquer chuva entrasse livre-leve-e-solta, banhando o tapete e as almofadas, que eram meu sofá.
Contava esses casos rindo amarelo (ainda) de mim mesma. Não percebia que eram sinais de que algo em mim estava acontecendo. E que era um algo muito perigoso.
Depois que se repetiram, deixei de contá-los. Não tinham mais graça alguma!
Assim fui deixando mansamente de ir, de contar, de querer, de falar, de desejar, de ser.Tudo muito mansamente…
Tive que escrever uma lista de coisas a fazer antes de sair de casa e pregar na porta da sala.
-Desligar TUDO que estiver ligado.
-Fechar as janelas.
-Levar o lixo para fora.
-Fechar as torneiras.
-Check list da bolsa: chaves, carteira, contas, e todas as quinquilharias que eu achava que precisaria todos os dias.
Parecia engraçado, mas não era. A lista crescia todo dia.
As madrugadas me viam absorta na janela de um 15 andar, acompanhada de uma lua tardia. Tão solitária como eu. Pensava que ambas éramos românticas, mas sempre estávamos sós. Estávamos tão perto de tudo e esse tudo era tão inalcançável! Pensei que era porque ambas éramos desertas…
Contava a ela e a mim mesma os fracassos da vida. Não gostava mais do trabalho que sempre me havia encantado. Só tinha podido ter uma filha e nem sabia se tinha sido a mãe que ela precisava! Não sabia administrar minha própria casa, nem a vida afetiva: um noivado desfeito, uma casamento fracassado, namoros superficiais, algum amante proibido que esvaziava mais do que preenchia minhas carências. E agora nem isso! Insegurança profissional e financeira. Tanto estudo para nada! Trabalhava um horror de horas para poder pagar as contas e olhe lá!
Era isso viver?
E ainda por cima gastava em discos quando nem havia pago ainda a conta da luz, do condomínio, do IPTU… e tudo, e tudo. Comprava sete discos de uma vez e os escondia na prateleira. Escondia-os de mim mesma…da culpa. E nem sequer os escutava. Pela culpa. Melhor não.
Agora nem música, nem livros, nem televisão…
Sentia como se estivesse imersa em um silêncio interno, morno, pegajoso, cansado. Quando ele me vencia, dormia entre sonhos de desassossego.
Despertar era um esforço imenso, como se tivesse que lutar para desenterrar a cabeça de um buraco no fundo da terra…
“Reaja!” Eu me dizia. “Você está virando uma ameba!”
Escolhi umas fotos em que estava bonita e sorridente e prendi na porta da geladeira, para lembrar de quando eu era feliz! Não queria esquecer quem eu era!
Com a ajuda de um despertador, forçava-me a sair da cama, beber um copo de água e me jogar para fora de casa.
Comecei a caminhar na praia pelas manhãs. Precisava manter algum exercício físico já que não ia mais à academia. Sair era o pior momento, mas depois, “estar diante do mar seria um bálsamo”, pensei.
Isso durou alguns dias… só alguns.
Em pouco tempo, encarar a luz do dia me fazia mal. Olhar o mar me fazia chorar… a solidão parecia maior.
Aquela figura embaçada que eu era, caminhando contra o vento marítimo, molhada de lágrimas, era patética demais. Melhor não ir.
A janela da sala agora permanecia fechada, com as cortinas cerradas. O sol me doía dentro do coração.
Começava coisas que nunca terminava… tinha pelo menos 5 livros iniciados espalhados pela casa. Um deles – Bom dia, Angústia, de Sponville – obrigatório para um curso que estava fazendo, me arrepiava de medo só pelo título. Olhava para ele como quem descobre uma cascavel entre os lençóis da cama, sempre desfeita. Pânico!
Me exigiam também um resumo comentado de O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. A cada página lida, uma raiva surda que me subia das entranhas! Imaginava a fogueira que eu iria fazer no meio sala com o livro, assim que acabasse de lê-lo. Mas nunca terminava… nunca terminava… ele crescia em páginas a cada tentativa minha de avançar. Era mágico! O desgraçado ficava mais grosso todo dia!
Eu chegava atrasada a todos os compromissos. Talvez porque não quisesse mesmo ir. “Melhor não ir”, pensava.
Mas ia. Depois de rodar pela casa vestindo todas as roupas que não gostava, tirando tudo de dentro do armário e não encontrando justamente aquela que me deixaria pelo menos apresentável, guardando a escova de cabelo dentro da geladeira, comendo em pé no meio da cozinha, esquecendo de levar pastas importantes (mais coisas para a lista) e depois, o pior…
Perdia-me!
A cidade era a mesma de sempre, mas eu me perdia. Entrava em ruas desconhecidas, dobrava a esquerda quando deveria ir pela direita, ia para uma casa que não era mais a minha…
Não lembro o que pensava enquanto dirigia. Um perigo! Por duas vezes cruzei sinais vermelhos jurando que haviam ficado verde. É que estava olhando para o sinal contrário à minha direção. Alguma vez parei o carro em pleno sinal verde. Também só vi o vermelho fechado para o sentido contrário. Sentido? Que sentido?
Parava o carro às vezes e me perguntava para onde estava indo? Eram apenas segundos de dúvida, mas podiam levar-me por avenidas enormes onde tinha que dirigir quilômetros até encontrar uma forma de voltar. Voltar para onde?
Outras vezes saía disposta a visitar uma amiga. Desistia no meio do caminho e decidia ir ver minha mãe. Desistia disso também e resolvia voltar para casa. E perdia-me outra vez. Parava muitas vezes chorando por alguma música que tocava no rádio… “Eu nem sei, porque me sinto assim… vem de repente uma anjo triste perto de mim…”
Preferia que nada tocasse no rádio. Desligava.
Mesmo assim, chorava.
Perdi o sentido. Perdi todos os sentidos!
A verdade é que a cidade não era mais a mesma. Parecia desconhecida.
Gostava mais dos dias de chuva agora… sentia-me mais acolhida, encolhida, abraçada.
Gostava? Não sabia mais o que era gostar de alguma coisa. Mas pelo menos não havia um sol brilhante a me ferir a pele e os olhos, nem céu azul, nem rebuliço de gente feliz pelas ruas. Como podiam rir aquelas pessoas com aquele sol e calor?
A chuva era fresca. A chuva chorava. A chuva pintava a cidade de cinza. Tudo ficava da minha cor. Cinza.
Por que não chovia todos os dias? Era tão mais fácil viver!
Então, dormir foi ficando impossível… tinha fantasias de morte. Pensava que morrer não seria tão mal assim. Já havia vivido o melhor e o pior da vida. Achava que seria apenas fechar o olho e não abri-lo nunca mais. Mas tinha tanto medo! Melhor não dormir!
Mas estava tão cansada!
Por uns dias, parei com todas as atividades “obrigatórias” e resolvi contar tudo a minha mãe. Fiquei indo lá sempre que podia e era em sua cama o único lugar em que descansava. Ela me dava um suco ou um café, eu deitava e dormia. Ali não morreria!
Ela me dizia que eu tinha que reagir… que eu tinha tudo para ser feliz, que não entendia porque me queixava, se era livre, independente e dona do meu destino! Era tudo que ela não havia podido ser…
Fiquei com vergonha. Deixei de ir lá e disse-lhe que já estava melhor.
Comecei a frequentar a casa de uma amiga que trabalhava com bijou.Ela trabalhando e eu dormindo no sofá… uns quatro ou cinco dias.
Depois fiquei com vergonha…
E não ia mais a lugar nenhum, exceto aos lugares “obrigatórios”.
Ali ficava, como uma sombra… ninguém notava nada. Se alguém percebia algo estranho e me perguntava se estava bem, eu respondia que não, mas que era passageiro. Já ia passar! E ficava por isso mesmo. Ninguém percebia que eu não estava ali. Era só a casca de mim que perambulava pelo mundo!Eu era uma replicante.
Descobri um trabalho para ficar em casa. Selecionar cenas de filmes para ilustrar as habilidades de liderança. Era só alugar fitas de vídeo, assistir, anotar e gravar. Quatro dias por semana sem obrigação de ir mais longe que a locadora mais perto. Perfeito!
Sofria nos filmes violentos, sofria nos filmes tristes, invejava os felizes.
Comia desreguladamente. Nem lembro o que comia. Coisas congeladas, eu acho. Sorvetes, pipocas, jujubas.
E aí fui diminuindo por dentro e crescendo por fora.
E chorava… e chorava…
Isso durou mais ou menos três meses, embora hoje eu saiba que começou antes de que eu mesma pudesse perceber.
Um dia, sentei para fazer xixi e fiquei ali por um tempo indefinido…
Quando o telefone tocou e me levantei para atendê-lo, caí sem sentir as pernas. Estavam completamente adormecidas…
Tentei “nadar” até a sala, mas quando cheguei lá, chorava tanto que não atendi.
Alguns minutos depois, o telefone tocou outra vez…
Levantei-o do gancho, tremendo. Era uma amiga que eu não via há mais ou menos dois anos.
Ao escutar meu rouco e sussurrado “alô”, perguntou: “O que você tem?”
Respondi ” não sei, acho que morri…”

Adelaide disse assim: “… desmorona num vazio de dentro… até cair feito fantoche sem ninguém pra mover os fios, boneco de ventríloquo sem o amo pra falar por ele…
E eu? Eu não disse mais nada…
Entreguei os pontos.

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Felicidade Clandestina…

Esta história, escrita por Clarice Lispector, foi publicada por Sonja. Pedi emprestada imediatamente. Porque ela parece minha… Não, porque ela é minha.
Reinações de Narizinho foi o primeiro livro que ganhei. Um livro meu!? Haja felicidade!
E o Lorde, às vezes, chamava-me de Narizinho Arrebitado, que para mim era um elogio e tanto! Mais do que quando me disseram, muitos anos depois, que eu parecia com Florinda Bolkan!!!
Digo que a história é minha porque descreve o que é felicidade clandestina
Descreve, como eu já descrevi, o que era deixar um envelope cerrado sobre a mesa e fazer de conta que ele não estava ali ainda…
Descreve o que era sentar na rede e adiar a felicidade guardada em poucas frases…
Quem leu a História de Amor, escrita neste blog, sabe do que estou falando! E juro que eu nem conhecia este texto antes de hoje.
Ah! Essa Clarice!
Que mulher para escrever o que eu sinto!

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Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.
Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.”
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito.
Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Clarice Lispector

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