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Uma lição de vida… por Chimamanda Ngozi Adichie.

Um dia assisti estes vídeos com uma palestra desta jovem escritora nigeriana e me encantei. Chama-se ” O PERIGO DE UMA ÚNICA HISTÓRIA”
Guardei o link para voltar a vê-los, uma ação que repito sempre que algo me impresiona à primeira vista. Gosto de saber como reajo a um segundo ou terceiro contato.
Cada vez que os vejo, mas gosto deles. E mais quero comparti-los.
É uma pena perceber como as vítimas da educação para o desconhecimento e a crença numa “meia” história deixam-se levar , entre gritos raivosos ou silêncios condescendentes, para a ignorância sobre si mesmos, sobre o seu povo, seu país, seu passado e seu futuro.
Claro está que há um motivo: para os governantes é mais fácil manipular gente assim.
Hoje o dia está estranho, nublado e quente. Acho que vou ali na Fnac comprar o livro desta inteligente criatura.
Depois conto.

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Duas pérolas…

Um sábado destes, saí pela manhã brillante de Barcelona, sem nenhum objetivo além de respirar o ar fresco entre as ruas estreitas do bairro gótico, observar a diversidade da fauna humana que cruza suas calçadas… sentir o pulsar de seus corações, quase todos enamorados pela cidade.
Quer programa melhor?
Pois sim.
Garimpar as pérolas que guardam as esquinas de pedras ancestrais de seus palácios e igrejas.
Concerto ao ar livre em BarcelonaEm uma delas, encontrei um grupo de pessoas que cercava um músico cego. A voz da criatura se elevava sobre um centenar de cabeças e cantava maravilhosamente as antigas canções de toda a minha vida. Sentei num canto perto e fique ali, não sei  por quanto tempo, mas fiquei com ele, seu concerto e minha história. Que sensação tão boa de felicidade! Eu sorria sozinha.
Diante de mim havia um homem que, de olhos fechados, vivia cada música, estalando os dedos e movendo levemente a cabeça no ritmo de cada canção. Entre uma e outra canção, as pessoas mudavam, umas saíam aplaudindo, outras paravam, adiando um pouco a chegada ao seu destino. Umas poucas, como eu e o sujeito dos olhos fechados, estavam sem destino certo, entregues a cada descoberta, sem nenhuma vontade de perder o espetáculo inteiro. Ficamos até que o homem começou a guardar sua guitarra. Comprei seu disco. Chama-se Aaron Lordson. Foi uma boa idéia. Escuto-o agora e sorrio levemente sentindo outra vez o perfume do vento marítimo de Barcelona, experimentando outra vez a sensação de felicidade singular que aquele momento me trouxe.
Arias de óperas nas calçadas de BArcelonaAndei mais um pouco, tentando perder-me o mais possível pelos belíssimos becos cheios de varandas floridas, quando outra pérola me fez parar. Especialíssima! E esta estava praticamente sozinha. Um senhora linda, com um cabelo preso num coque antigo, cantava arias de ópera sobre um balcão elevado da calçada de um palácio. Ao seu lado, uma cadeira com una cestinha para as moedas e um cartaz que dizia “Aulas de Canto Clássico, fone tal e tal” .
A senhora já não tinha tanta força na voz para os tons mais altos e então entrecortava-os com classe e doçura. Uma emoção funda me invadiu. Quase chorei… Que presente!
Então sentei do lado oposto da calçada e deixei que ela cantasse Mimi, de La Bohème, para mim, enquanto os passantes, turistas apressadinhos com seus mapas na mão, evitavam parar para não precisar colocar uma moeda em sua cestinha.
Pedi licença para fazer a foto e deixei minha moeda, agradecida e enfeitiçada pela sua beleza.
Precisava guardar esse momento para compartilhar aqui. Depois de tanto tempo sem computador e sem Internet decente, seria uma boa reentrada em cena. Ou não?
Ps: Olha só o que encontrei no iutubi. Hohoho! Ela se chama Pilar Rodrigues.

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Mario Benedetti.

Estava longe de mim quando soube a notícia. Não quis saber o que fazer com ela.
Hoje saquei do fundo do coração a saudade, as lembranças das muitas noites insones com seu Inventário, copiando no caderno de “especiarias” os poemas preferidos.
O caderno era o meu blog no século passado. Tinha uma capa dura de cor cinza em que se podia ver uma fotografia de pequenos troços de pano com as bordas chamuscadas. Sobre eles estavam dispostas uns montículos de espécies: cravo, canela, pimenta, noz moscada.
Talvez ele tivesse a missão de ser um caderno de receitas, mas para mim ele sugeria que guardava tesouros, pois as espécies é que, na antiguidade, protegiam os alimentos de se estragarem e acendiam os sabores dos mesmos.
Como a cozinha não me seduzia, interpretei a mensagem como uma insinuação simbólica: preservar; sabores sutis; manutenção de propriedades; perfumar… e por aí.
Pois era ali que eu colava recortes de revistas, copiava poesias dos meus queridos, guardava letras de músicas, escrevia pequenas reflexões e textos pessoais.
Meu caderno sumiu em uma das mudanças. O Inventário de Benedetti foi roubado muito antes. Sei até quem foi o ladrão.
Agora eu estou fazendo o mesmo no blog. O bom é que aqui eu compartilho o que antes era trancado na gaveta da cômoda.
Então…
Uma das primeiras poesias que publiquei no Impressões foi de Benedetti. Era um Pai Nosso lindíssimo. Vou procurar em meus baús.
Por enquanto deixo o registro, como uma homenagem a ele, uma linda interpretação de Te Quiero, com Nacha Guevara.

Te quiero
Tus manos son mi caricia,
mis acordes cotidianos;
te quiero porque tus manos
trabajan por la justicia.
Si te quiero es porque sos
mi amor, mi cómplice, y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.
Tus ojos son mi conjuro
contra la mala jornada;
te quiero por tu mirada
que mira y siembra futuro.
Tu boca que es tuya y mía,
Tu boca no se equivoca;
te quiero por que tu boca
sabe gritar rebeldía.
Si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.
Y por tu rostro sincero.
Y tu paso vagabundo.
Y tu llanto por el mundo.
Porque sos pueblo te quiero.
Y porque amor no es aurora,
ni cándida moraleja,
y porque somos pareja
que sabe que no está sola.
Te quiero en mi paraíso;
es decir, que en mi país
la gente vive feliz
aunque no tenga permiso.
Si te quiero es por que sos
mi amor, mi cómplice y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.

Mario Benedetti

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Derviches, um belíssimo espetáculo.

Derviches girando
Ano passado, durante a Expo 2008, em Zaragoza, tive a oportunidade de assistir um espetáculo interessantíssimo.
Soubemos, por uma amiga turca que estava trabalhando ali, que haveria uma apresentação dos Derviches, promovido pelo Ministério de Cultura da República da Turquia, em um auditório da feira internacional. Nos interessamos muito e nossa amiga nos conseguiu os convites. Não era algo que se pudesse comprar na bilheteria, as pessoas tinham que ser convidadas.
Agradecemos mutíssimo a Feyza pelo carinho e consideração, afinal chegamos de última hora e ainda saímos com um presentão destes.
Há muito tempo que eu tinha escrito, no meu Docs Google, um incipiente post sobre os Derviches, mas o texto estava precisando de ajustes, alguma boa pesquisa de fotos, uma re-leitura do folder
Depois esqueci. Com a mudança para a Cesta de Gatos perdi a memória.
Acho que agora ele sai do forno!
Havia ouvido falar sobre os Derviches alguma vez pela vida afora, mas não tinha nem a mais remota ideia de um dia poder assistir ao vivo a esse ritual religioso do Islam.
Não sei se vou conseguir explicar como foi a minha experiência, mas tive a sorte de encontrar no YouTube vários vídeos muito bons sobre eles.
Não era permitido gravar o espetáculo de Zaragoza e só pude tirar uma foto, sem flash, que nem saiu muito boa, porque eu não quis dar uma de turista chata. Também foi bom ter guardado o folder, de onde tirei todas as informações que pude para uma noção breve dos simbolismos presentes no ritual.

Tudo o que pude ver na Expo2008 de Zaragoza foi uma apresentação do Cirque du Solei, visitar alguns pavilhões mais ou menos interessantes sobre os projetos hídricos de vários países, e algumas apresentações musicais. .
Estive na feira por dois dias. As filas eram homéricas e não pude entrar em muitos pavilhões. Para ser sincera fiquei um pouco decepcionada. E talvez por isso não tenha escrito nada na época.
Então…
Decidi só escrever sobre o que mais me impressionou, pela beleza e também pelo inusitado e inesperado programa: a apresentação dos Derviches Dançantes Turcos, apesar deles não terem nada que ver com a água do planeta.
Aposto que há uma centena de posts sobre a Expo2008, se alguém quiser aprofundar o assunto. Acho que vou publicar uma das fotos, só para deixar o registro.

Em primeiro lugar me impressionou o silêncio do público, mesmo antes de começar o espetáculo. Um silêncio respeitoso e solene, incluso nos grupos de jovens que estavam presentes. Afinal aquilo não seria um “show” e sim uma expressão tradicional da cultura e religião de um povo.
Músicos
Primeiro houve uma apresentação do Conjunto de Música Tradicional de Istambul. Um grupo de músicos apoiado pelo Ministério de Cultura da Turquia para investigar e estudar a antiga música clássica turca, principalmente a Sufi. E incentivar, através de suas apresentações dentro de suas fronteiras e em palcos internacionais, a passagem para os jovens do conjunto de valores históricos e culturais de seus ancestrais.
Eles começaram a tocar e cantar… e o espírito da música começou a preencher o auditório de uma forma que parecia querer transportar-nos para a Turquia. Relaxei e me deixei levar.
Depois disso houve um pequeno intervalo antes que começasse a dança propriamente dita. Foi o tempo de ler um pouco para tentar entender os movimentos dos dançarinos.
A cerimônia da dança sagrada chama-se Sema.

Primeiro entram os cantores e músicos e se posicionam ao fundo da sala. Os músicos tocam instrumentos completamente distintos aos nossos. São flautas, intrumentos de cordas e de percussão medievais. O conjunto formado por eles, a luz, as cores, as vestimentas… o silêncio em torno de tudo já é um exercício de concentração.
Logo em seguida os dançarinos entram, com seus trajes claros e rodados cobertos por uma longa capa negra. Eles reverenciam o posto vermelho*, cruzam os braços sobre o peito com a mão esquerda apoiada sobre o ombro direito e a mão direita no ombro esquerdo, a posição de humildade.
Então, um a um, eles sentam numa pele de cordeiro branca à direita dos músicos. Tudo muito lentamente…
Posto vermelho é uma pele de cordeiro tingida de rubro que está à esquerda da sala e que será utilizada pelo Shaikh, o homem que sabe. A cor vermelha da pele simboliza a manifestação de Deus ao homem e o Shaikh representa o venerável Mevlana, um dos maiores líderes espirituais e também poeta, inspirador da Ordem Sufi Mavlevi, uma corrente espiritual mística do Islam.
Há, entre o posto vermelho e o setor dos músicos, uma linha imaginária que só o Shaikh, que conhece o caminho da realidade divina, pisa. Esta linha se chama o Equador e separa a sala do Sema em duas partes: o lado direito, descendente, é o reino material, e o lado esquerdo, ascendente, o reino espiritual.
Quando ele entra na sala dirige-se pausadamente ao posto vermelho, senta-se e todos começam a recitar o Naat, um poema que expressa amor e respeito pelo profeta Mohamed.
Depois há uma mudança da música e dos golpes de tambores, o Peshrev, na qual os dançarinos golpeiam o solo com as mão e se levantam, simbolizando que tudo existe por mandado de Alá, ao mesmo tempo que representam o morto levantando-se da tumba.
Eles dão três voltas em círculo pela sala que simbolizam a ascensão desde o reino do material ao reino do espiritual. As três voltas representam os três níveis do conhecimento que se conhecem nos ensinamentos sufies : saber, ver e chegar a ser.
Essa parte do ritual mostra que só se pode alcançar a Verdade e a Realidade confiando em um guia que conheça o caminho.
Quando os dançarinos e o Shaikh passam pelo posto vermelho se saúdam um ao outro com uma reverência de humildade que expressa a saudação de um irmão a outro irmão, de uma alma a outra alma.
Durante a saudação eles colocam a mão direita no coração sob a capa e os pés se cruzam com os dedos direitos sobre os dedos esquerdos.
Eles fazem isso nos dois lados do Equador. Finalmente, o Shaikh se põe em seu lugar, no posto vermelho, e essa parte do ritual, o Ciclo do Sultão Valed termina.

No momento seguinte os dançarinos se despojam de suas capas negras e se mostram com seus trajes claros, simbolizando o nascimento espiritual. Permanecem erguidos com os braços cruzados entre ombros enquanto o mestre de dança, o Semazenbashi, se dirige ao Shaikh e pede permissão para começar o Sema. Os dançarinos o acompanham nas saudações.
Aí já fazia um tempo que não recordo, mas que era muito grande, que estávamos assistindo, hipnotizados pela música e os lentos movimentos do grupo.
E só agora é que realmente a dança ia começar.
Quando o Shaikh dá permissão, os dançarinos passam um a um diante dele e beijam sua mão direita. Ele, por sua vez, beija a copa de seus chapéus e dá início ao Sema.

Os dançarinos estendem os braços com a palma da mão esquerda para baixo, os olhos entornados olhando fixamente o polegar esquerdo. Esta postura simboliza a justa distribuição entre os demais do que se recebe de Deus. Conforme eles giram da direita para a esquerda, os dançarinos repetem interiormente a cada volta Al-La enquanto o mestre de dança se move em torno da arena, dirigindo os dançarinos.
Esta parte do Sema, o Primeiro Selam é o nível da Justiça Divina no Sufismo, que quer dizer o nascer para a Realidade através do conhecimento, onde o ser humano se faz consciente da Grandeza do Criador e de sua própria condição de servo.
A medida que este Selam termina, o Shaikh avança para frente, recita as súplicas e anuncia sua permissão para o próximo Selam.
Quando o último dançarino começa a girar, ele troca humildes sinais de reverência com o mestre de dança e regressa à pele de cordeiro vermelha.
O Segundo Selam tem um ritmo mais lento, uma música que leva à contemplação. Os dançarinos saúdam o Shaikh mas começam a girar imediatamente depois, sem beijar sua mão. Este estágio da dança simboliza um estado de assombro reverencial ao presenciar o poder de Alá manifestado na grandeza e harmonia da criação.

O Terceiro Selam começa e termina com três ritmos distintos: o primeiro de 28 golpes de percussão, o segundo de 10 golpes e o terceiro de 6, levando a dança a uma cadência cada vez mais acelerada, incrementando a tensão da música.
Esse momento reflete o nível da Verdade e da Realidade, onde reverência e obrigação se convertem em amor e o intelecto se sacrifica em função do amor. É a submissão total, a união com Alá.
… Neste momento a gente, que assiste em silêncio, já está em uma espécie de transe…
O tempo em que eles permanecem girando, a música, as roupas, a meia luz…
Já faz tanto tempo que estamos ali…
Algumas senhoras se levantam e deixam o auditório. Creio que elas não suportaram a tensão…
O Quarto Selam tem um ritmo lento, como se tivessem sido todos arrancados do ritmo intoxicante do Selam anterior e estivessem a sós com a Realidade.
Os dançarinos começam a girar em torno de si mesmos, permanecendo em seu lugar.
O Shaikh e o mestre de dança se unem a este Sema e giram, mas eles não se despojam de suas túnicas negras. Eles agarram a túnica com a mão esquerda a altura da cintura e a parte de cima da túnica com a mão direita, abrindo-a ligeiramente enquanto giram sobre si mesmos.
Aqui se expressa a contemplação da viagem espiritual, onde, feliz com seu destino, o ser humano volta à obrigação para a qual foi criado, a saber, sua condição de servo.
Ao final deste Selam os músicos tocam peças com ritmos frenéticos, como se escutou no final do Terceiro Selam.
Depois se ouve um solo, onde afinal os corações acelerados e exuberantes por haverem alcançado a condição de servos, logram a calma gradualmente.
Quando o Shaikh volta ao posto vermelho, a música cessa e começa a recitação do Nobre Corão.
Enquanto se recita o Corão, os Derviches Dançantes param o Sema, retirando-se para o borde da pele de cordeiro branca e sentam-se. Um deles comprova se todos levam suas capas negras.
Depois de finalizar a recitação do Corão, eles todos rezam em seus interiores uma Sura de Fatiha e se levantam. Finalizam este estágio com a expressão “Hu” que todos dizem com intonação de voz profunda.
Os dançarinos fazem uma reverência ao Shaikh no posto vermelho e saem em um estado de sossego, humildade, sigilo e calma.
Duas horas e meia depois de entrarmos aí, somos uns seres distintos.
Os que não suportaram se foram. Os que ficaram sairam ainda em silêncio… com um sentimento de assombro e encantamento.
É impressionante a quantidade de rituais religiosos pelo planeta, cada um com sua história e seus simbolismos.
Eu gosto de rituais… desde que não sejam malvados.
E este, além de impressionante… é lindo!

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Semana Santa em España

A primeira vez que vi uma procissão de Semana Santa na Espanha fiquei muito impressionada. Na época, escrevi para o blog Cicatrizes da Mirada. Estávamos em 2003 e meu blog tinha mais ou menos um mês.
Não havíamos podido viajar até a Andaluzia ( região famosa pelos espetáculos sacros durante essa época ) e assistimos as procissões de Alcalá de Henares, a cidade mais próxima ao “pueblo” onde eu morava. Fiquei absolutamente encantada!
A cidade estava toda apagada, as luzes das velas jogando tons amarelados sobre os muros antigos da muralha, as sombras dos penitentes, encapuzados e vestidos com longos hábitos e capas com as cores de sua confraria, projetando-se pelas ruas. O silêncio apenas interrompido pelos sons dos tambores.
Tum-tum…tum-tum!
Sob os hábitos e os capuzes que os igualavam em forma e altura, os penitentes tinham visíveis apenas os olhos e os pés, muitos deles descalços, com grossas correntes prendidas nos tornozelos que arranhavam o asfalto num ruído mórbido… srenckmm…srenckmmm… lentamente e repetidamente….o mesmo ruído… Apesar de nossa presença, eles iam caminhando compenetrados, cumprindo suas penitências.
No começo foi dando em mim um estado de letargia…
A respiração parecia seguir o mesmo passo lento de todos… e depois era como se voltássemos no tempo… não estávamos mais aqui, no início do século XXI e sim em algum lugar de um passado sem data, sem tempo, sem hora.
Por um tempo indefinido a procissão passou… lenta, pacientemente…e meu coração quase parou.

Eu não sou religiosa, mas respeito as crenças alheias. Gosto dos rituais litúrgicos e adoro a música sacra. Ficar em silêncio numa hora dessas é um sinal de cuidado e consideração, mesmo se as pessoas que estejam ali assistindo não tenham qualquer devoção católica.
Mas este silêncio todo, descobri depois, era fruto de um comportamento regional. Em Castilla as procissões são mais formais, mais solenes, mais medievais.
Em Andaluzia todo mundo fala, ri, joga flores e elogios às suas imagens. Se por um lado essa abertura toda é bonita… por outro dá lugar a que muita gente que está ali nem se preocupe com a procissão, converse em voz alta, grite ao telefone bem no pé do seu ouvido, fume na sua cara e beba em latas que joga pelo chão durante o desfile e, para mim, isso desvirtua o ato religioso, desrespeita o fiel e desprestigia o espetáculo.
Na minha opinião a Semana Santa da Espanha é um evento mais do que religioso. É um evento estético. É uma expressão da arte sacra. E já compreendi que esta arte faz parte da pele e do sangue deste povo.
Por uma semana completa, a Espanha inteira é um grande palco por onde desfilam as tradições católicas. Cada pequeno pueblo tem seu Cristo, sua Virgem especial.
As procissões serpenteiam pelas ruas das grandes e pequenas cidades, dia e noite, como um rosário de contas coloridas, cada uma com suas características próprias. Cada uma é única.
Essas fotos acima foram feitas em Tarifa, ao sul da Andaluzia. Ali também as pessoas não se cortam em conversar durante o cortejo ou andar por entre os penitentes, como se eles não estivessem ali.
Isso me incomodou muitíssimo.
De qualquer forma, em Tarifa, as confrarias também não se importam. Jamais vi algum penitente ou organizador impedir o passeio desrespeitoso por entre suas alas. Todas as noites da semana saem de suas igrejas e desfilam pelos becos estreitos, enfrentando o vento, o frio e o descaso da grande maioria de seus assistentes, insistindo em manter o clima de compenetração, que é quase impossível.
Desta vez eu tive pena deles . Tanto esforço, tanto sacrifício para que as pessoas passeassem por entre os círios, tropeçando em seus nazarenos, indiferentes ao seu significado.
Tarifa se enche de turistas de praia, a maioria jovens e estrangeiros. Eu entendo que não se interessem, mas bem que podiam passar por outra rua… que custa?
Meu cunhado e minhas sobrinhas participaram de duas procissões. Fiquei com um pena deles!
Mas…de qualquer forma, assistir o espetáculo sempre vale a pena. É preciso ter paciência, buscar um bom cantinho, num rua com menos movimento e exercitar a benevolência e a compaixão.
Bueno… é preciso também saber onde ir. Se quiser mais recolhimento é melhor não ir à Andaluzia.

Málaga, Cádiz, Salamanca, Ávila, Segóvia,Toledo…. todas as cidades tem seus rituais.
Zamora desfila em absoluto silêncio e quando canta é um mísere gregoriano. Lindíssimo!
Sevilla grita, chora e aplaude. Emocionante também!
Cada um com seu estilo e sua tradição.
Em qualquer lugar do país há um espetáculo imperdível, pode apostar. Por minha vontade eu iria cada ano a uma região.
Os Pasos são obras, em sua maioria, de madeira e metal. Sobre eles vai uma imagem de Virgem ou de Cristo que representam uma das muitas confrarias de uma igreja da cidade.
As Virgens são lindas, todas cobertas com rendas renascentistas e espetaculares mantos bordados, com suas lágrimas de cristal transparente, rodeadas de luzes ou velas. A gente arrepia só em vê-las passar, sofrendo todos os dias a morte de seu filho.
A mais famosa delas é a Macarena, de Sevilla.
Há lindos cantos e poesias em sua homenagem e quando ela desfila a cidade inteira está nas ruas por toda a noite. Gritam seu nome entre lágrimas: “Guapa! Guapa!” (Bela, bela!)
Os Cristos morrem em suas cruzes, pedindo ao povo que recordem sua dor.

Por baixo disso tudo, homens e mulheres vestidos com roupas reforçadas por turbantes e peças alcochoadas, levam sobre os ombros o peso de mais de mil quilos.
São os costaleiros, tradicionais em toda a Espanha. Poucas são as procissões que utilizam rodas em seus Pasos.
É belíssimo ver como se movem mais de duzentos pares de pés, dentro de suas sapatilhas de esparto, ao mesmo passo, ao mesmo ritmo, balançando-se levemente para fazer mecer o Paso e sua imagem querida.
Sobem e descem encostas, metem-se em ruas tão estreitas que pensamos que será impossível vencer o desafio, dobram-se sobre os joelhos quando precisam desviar de alguma construção mais baixa ou passar por uma porta impossível e seguem bailando, como se não sentissem o peso que carregam por muitas horas… às vezes por toda uma noite.
O Cristo ou a Virgem balançam no alto, como se viessem levitando sobre as cabeças dos fiéis. Uma mudança de ritmo da música é acompanhado por uma mudança de ritmo nos passos dos que os carregam…
Uma coisa linda! De arrepiar todos os pelinhos do corpo…
Algumas dessas imagens são obras de arte que tem um valor incalculável, além de muitas histórias, mas isso não importa muito. O simbolismo que representam é o mais valioso…
De repente, o Paso para. E de uma sacada uma mulher começa a cantar, à capela… sem música alguma que a acompanhe. É uma Saeta. Uma prece triste e ardorosa, bem ao estilo espanhol, como uma canção flamenca.
E nesse momento, os pelinhos do corpo parecem saltar para fora…
Parece, por instantes, que as gentes que desfilam e as que assistem vão, finalmente, obedecer o mais importante ensinamento de Jesus Cristo: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.
E eu, mesmo não sendo religiosa, agnóstica por falta de convicção, me emociono até as lágrimas…
E rezo… para que toda aquela gente que baila e canta ao seu senhor e senhora seja benevolente consigo mesma, com o próximo e também com o distante… que a compaixão seja uma prática, mais que uma canção…

*Diana Navarro é uma conhecida cantora espanhola. Amei encontrar este vídeo no iutube.
É uma maravilha poder contar com esta ajudazinha.
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Ela disse…

“Não se nasce mulher: torna-se.”
Simone de Beauvoir

E eu completo com as seguintes imagens para dizer que não nos tornamos uma mulher. Nos tornamos várias. Somos eternas mutantes.
Somos todas.

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Uma Cigarra Espanhola…

Ele canta. E canta maravilhosamente!

Essa interessante criatura chama-se Diego,” El Cigala”.
Bonito não é. Mas tem um charme inegável quando se apresenta. Diego é um dos grandes nomes do Flamenco cantado em todo o mundo.
O Flamenco é um gênero musical que espelha perfeitamente a personalidade espanhola: dramática e passional.
Graças aos traços fortemente marcados pela passagem árabe e cigana na Península Ibérica, a Espanha possui essa riqueza cultural que esbanja por todas as suas expressões artísticas.
Comecei a gostar da música flamenca escutando Paco de Lucía, no Brasil.
Depois que cheguei em Madrid, fui escutando outros, entre eles Camarón de la Isla, um mestre do gênero. Agora sou uma enamorada do canto, da dança e do toque flamencos. Estrella Moriente é uma das minhas favoritas. Escreverei sobre ela em outra ocasião.
Pois sim…
Diego é um apaixonado pelo Flamenco. Vive, chora e canta Flamenco por todos os poros. Eu adoro como ele se transforma enquanto está cantando…

Mas o interessante é que ele conquistou meu coração justamente quando gravou, junto com o extraordinário pianista cubano Bebo Valdez, um CD encantado: Lágrimas Negras.
Não é um disco de Flamenco, mas ele interpreta as músicas com seu jeito chorado de dizer as canções, que eu adoro.
Ai, meu Deus… é de arrepiar!
Ele, inclusive, interpreta Eu Sei Que Vou Te Amar, de Vinícius de Moraes, com uma participação especial de Caetano Veloso recitando a letra de Coração Vagabundo em vez da poesia de toda a vida, O Soneto da Fidelidade
Comprei e ouvi todos os dias… até poder cantarolar com ele todas as músicas do CD.
E atualmente é um dos meus melhores CDs de música popular. *Qualquer dia destes eu faço uma “apresentação” dos meus preferidos aqui.
A paixão foi tão grande que levei-o como presente para todas as amigas pernambucanas. Depois de um tampo eu vi que o projeto ganhou muitos prêmios internacionais e transformou-se num grande êxito em concertos por todo o mundo. Quem me dera ver um!
Por um tempo o show ficou em cartaz no Calle 54, em Madrid. Mas eu não pude ir.
Na época publiquei no Impressões, meu antigo e desaparecido blog, um post sobre ele. Vou fazer melhor agora. Vou deixar aqui uma marca mais forte. Um vídeo onde Diego e Bebo interpretam a música título do CD.

Boas Notícias!!! El Cigala acaba de lançar seu mais novo trabalho. Chama-se Dos Lagrimas.
Segundo li no jornal, é uma continuação do Lágrimas Negras. Claro que eu vou comprar JÁ!

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Porque hoje chove…

Porque eu tenho um café quente na caneca azul…porque eu choro quando estou cheia daquelas saudades sem nome.. porque eu amo quando Tom Waits enche a casa com essa voz … E porque hoje é sexta e eu queria um whisky com os amigos na casa com cheiro de jasmim de Casa Forte.
Eu ouço e derreto.

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Um presente casual…

Ontem me preparava para postar sobre Tarifa, onde estive por 15 dias, quando escutei uma música africana belíssima vinda da TV. Corri para ver o que era… E que presente! assim, de graça… só porque eu estava precisando!
Benditas casualidades cósmicas! Justamente naquele momento estava começando Assédio, de Bernardo Bertolucci.
Impossível perdê-lo. Esse está na lista dos que a gente deve ter.
Vi esse filme há muitos anos, em Recife. Me enamorei dele e da música e por muito tempo tentei comprar a trilha sonora mas jamais a encontrei.Tampouco pude assistir o filme nunca mais!
Ontem à noite ele me surpreendeu dentro de casa, assim, sem aviso prévio, de surpresa.
Interessante é que os filmes do Van Damme e Segall – que aqui passam quase todos os dias – são anunciados milhares de vezes. Mas uma pérola de Bertolucci vem sem anúncio, na surdina!
Adoro ver uma e outra vez os filmes da minha vida. Assédio é um deles. É uma história de desejo e amor, numa dose maciça de arte e beleza.
Imagens cuidadosamente trabalhadas entre sombras e luz, regadas por uma música que atua como um dos personagens principais.
O filme de Bertolucci é de uma fineza de detalhes, uma perfeição de luzes e cores, um espetáculo de música, de delicada sensualidade…
Um filme para se ver de mãos dadas, encolhida no fundo de um sofá cor de laranja, com a chuva madrilena molhando os cristais da janela do invernadeiro. Foi melhor vê-lo agora que na primeira vez.
É bom também deixar o som muito alto para que o piano de Mr. Kinsky inunde a sua casa junto com o sorriso doce e infantil de Shandurai.
Quem sabe essa dose maciça de arte possa remendar qualquer alma ferida pela crua e enferma grosseria da realidade televisiva dos últimos tempos.

“ASSÉDIO” (Besieged), Itália/França, 1998, 92 min. Dirigido por: Bernardo Bertolucci. Com: Thandie Newton, David Thewlis, Claudio Santamaria.
Filmes de Bernardo Bertolucci

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O Carteiro e o Poeta. Um filme para nunca esquecer…

Um dos grandes prazeres de ter uma boa conexão é descobrir as pérolas do YouTube.

Il Postino ( O Carteiro e o Poeta ).
Para mim, este é um dos grandes filmes que eu já vi na vida. É daqueles para se ter e poder rever sempre que se queira.
Por muito tempo eu mantive um caderno onde escrevia todos os filmes que via, com comentários e fotos. Não sei em qual das mudanças ele se perdeu e foi uma pena tão grande que deixei de anotá-los.
Depois de séculos eu voltei a registrá-los num arquivo do micro, porque durante um ano ou dois um dos meus trabalhos era assistir filmes. O trabalho consistia em encontrar cenas que pudessem ilustrar um manual de habilidades presentes no comportamento dos líderes.
Era uma delícia de trabalho! Imagine quantos filmes eu tive que ver… a trabalho e em casa, com um pacote de pipoca, em plena segunda feira! Ho ho ho! Eu adorava!
Muitos de meus amigos me telefonavam quando estavam numa locadora só para que eu indicasse algum filme ou comentasse sobre outro que queriam alugar.
No Brasil eu tinha uma boa coleção de videos, mas tive que deixá-la com meu irmão porque aqui na Europa o sistema era outro.
Agora estou pensando seriamente em fazer uma pequena lista dos filmes inesquecíveis e ir comprando-os, pouco a pouco.
Talvez eu compartilhe essa lista aqui…
Então… vou começar por este. IL POSTINO me emociona tanto que choro as mil vezes que o veja. E a música é simplesmente extraordinária!

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