Arquivo do mês: maio 2009

Mario Benedetti.

Estava longe de mim quando soube a notícia. Não quis saber o que fazer com ela.
Hoje saquei do fundo do coração a saudade, as lembranças das muitas noites insones com seu Inventário, copiando no caderno de “especiarias” os poemas preferidos.
O caderno era o meu blog no século passado. Tinha uma capa dura de cor cinza em que se podia ver uma fotografia de pequenos troços de pano com as bordas chamuscadas. Sobre eles estavam dispostas uns montículos de espécies: cravo, canela, pimenta, noz moscada.
Talvez ele tivesse a missão de ser um caderno de receitas, mas para mim ele sugeria que guardava tesouros, pois as espécies é que, na antiguidade, protegiam os alimentos de se estragarem e acendiam os sabores dos mesmos.
Como a cozinha não me seduzia, interpretei a mensagem como uma insinuação simbólica: preservar; sabores sutis; manutenção de propriedades; perfumar… e por aí.
Pois era ali que eu colava recortes de revistas, copiava poesias dos meus queridos, guardava letras de músicas, escrevia pequenas reflexões e textos pessoais.
Meu caderno sumiu em uma das mudanças. O Inventário de Benedetti foi roubado muito antes. Sei até quem foi o ladrão.
Agora eu estou fazendo o mesmo no blog. O bom é que aqui eu compartilho o que antes era trancado na gaveta da cômoda.
Então…
Uma das primeiras poesias que publiquei no Impressões foi de Benedetti. Era um Pai Nosso lindíssimo. Vou procurar em meus baús.
Por enquanto deixo o registro, como uma homenagem a ele, uma linda interpretação de Te Quiero, com Nacha Guevara.

Te quiero
Tus manos son mi caricia,
mis acordes cotidianos;
te quiero porque tus manos
trabajan por la justicia.
Si te quiero es porque sos
mi amor, mi cómplice, y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.
Tus ojos son mi conjuro
contra la mala jornada;
te quiero por tu mirada
que mira y siembra futuro.
Tu boca que es tuya y mía,
Tu boca no se equivoca;
te quiero por que tu boca
sabe gritar rebeldía.
Si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.
Y por tu rostro sincero.
Y tu paso vagabundo.
Y tu llanto por el mundo.
Porque sos pueblo te quiero.
Y porque amor no es aurora,
ni cándida moraleja,
y porque somos pareja
que sabe que no está sola.
Te quiero en mi paraíso;
es decir, que en mi país
la gente vive feliz
aunque no tenga permiso.
Si te quiero es por que sos
mi amor, mi cómplice y todo.
Y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.

Mario Benedetti

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A Ria de Vigo…um colírio!


Às vezes a semana nos dá de presente uma vista assim.
Quem dera fosse mais frequente.
O casamento de um amigo nos levou à Galícia.
O ganho extra foi aproveitar, por dois dias, o verde perfumado dos montes, as rias que se podem ver desde a estrada como se fossem dedos marítimos que penetram a terra galega levando os frutos do mar até a porta dos habitantes.
Além do mais, poder provar a comida saborosa e escutar o sotaque gostoso dos galegos.
A gente volta renovada… pena que é tão longe e não se possa ir sempre e sempre!
Eu adoro Madrid… mas sinto uma falta do mar!

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Sonhar é preciso…

Dizem que o universo conspira a favor dos nossos sonhos e cada vez estou mais segura de que isso é a pura verdade.
Eu tenho muitas histórias para contar sobre essas “conspirações” em minha vida, inclusive a maior de todas que é o motivo pelo qual vim parar na Espanha.

Mas, uma coisa é preciso avisar: os sonhos tem que ser compartilhados. Isto significa que eles precisam ser materializados na fala ou pelo menos na escrita. Nada de guardar os sonhos dentro da cabecinha. Eles precisam passear por aí, respirar ar puro… contaminar o planeta com a sua força, espalhar-se pelo cosmos.
Não é necessário que a gente saia contando para todas as pessoas… mas algo do mundo precisa saber que eles existem para que a energia se expanda.
Então… de vez em quando me lembro que é preciso continuar sonhando em voz alta, sempre, sempre. Há um universo a espera, a escuta! Ele tem provado uma e uma outra vez que é assim!
Isso aqui está parecendo livro de auto ajuda americano… mas não é.
Pois sim.
Isso tudo só para contar o que significou para mim o que aconteceu no início deste mês. Estive em Frankfurt, na Alemanha. Fui para assistir um concerto da Orquestra Sinfônica da Radio de Frankfurt, dirigida atualmente pelo diretor Paarvo Järvi, um discípulo de Leonard Bernstein. A famosa orquestra se apresentava com o Orfeon Donostiarra, um coral espanhol fantástico formado por quase cem homens e mulheres bascos. Além disso, duas excelentes solistas, Nathalie Dessay (soprano) y Alice Coote (mezzosoprano), completavam o espetáculo.
O repertório era a Sinfonía nº 2, “Resurreção” de Mahler.
Respire!
Eu mal podia respirar!
Desde o ano passado planejávamos uma viagem à Frankfurt para visitar o jovem músico da família, meu enteado. Ele conseguiu, com seus 25 anos, o que muitos músicos maduros tentaram e não conseguiram: a vaga de solista de oboé nessa prestigiosa orquestra europeia.
Uma vaga que não era preenchida nos últimos 5 anos, embora a orquestra estivesse sempre avaliando candidatos. Agora ele está nos últimos meses de experiência e anda precisando de uns mimos para aguentar a pressão que tem recebido da orquestra.
Queríamos organizar a visita, mas com a mudança de casa, o final do ano com hóspedes, os parcos recursos depois de tantos gastos, etc, etc… fomos deixando passar o tempo.
Mas, por obra e graça do… universo conspirador, estivemos falando desse sonho mais uma vez na segunda feira passada. Sabíamos sobre as datas do concerto, mas as condições do momento não estavam muito propícias para gastos extras.
Passamos a noite da segunda feira falando sobre a maravilha que seria poder estar lá… e vai e vem… e vem e vai….
Bueno, na quarta feira, abri meu correio eletrônico e começei a apagar os spams de sempre. Entre eles uma página de ofertas de viagens, pois se não tenho qualquer possibilidade, nem abro as propostas.
Tóin. Parei com o click do mouse no ar. A oferta era assim: “Vá a Frankfurt por 30 euros”. Heim?
Entrei na página e era isso mesmo, 60 eurozinhos, ida e volta. Sem pensar comecei a fazer os cálculos, casa grátis, comida baratinha e gostosa ( cerveja e salsicha hahahahha…), convites gratis para o concerto. Perfeito!
Mais facilidades que isso impossível!
Telefonei para meu pirata ( o pai da criatura, que baba de vontade de vê-lo tocar numa orquestra como esta ) e em dez segundos estava resolvido: vamos!
Pois fomos…
Na quinta feira estávamos voando para Frankfurt.
Passamos a noite passeando por Berguerstrasse, uma rua movimentadíssima, com bares e restaurantes rodeados por plantas e flores, as cadeirinhas nas calçadas, muita gente andando de bicicleta, um ar de tranquila satisfação na cara das pessoas… um clima primaveril delicioso! Que encanto!
Ao final desta rua encontramos um pequeno parque chinês, com flores de cores incríveis!

Até aí… tudo bem tranquilinho. A coisa começou a complicar quando quisemos comer e recordamos, “de repente não mais que de repente”, que as coisas ali estão escritas em Alemão e, na maioria das vezes, sem tradução para o Inglês.
Descobrimos uma lanchonete gostosa para comer as famosas salsichas que eu adoro. Como pedi-las olhando o menu sem fotos?
Arrisquei de primeira: “¿Hablas Español?” Perguntei sorrindo ao rapaz que me atendeu. “Un poquito”. Respondeu-me, divertido e simpático.
Pronto. Resolvido o problema. Nos próximos minutos trocamos muitos gestos entremeados por palavras soltas de Espanhol, Inglês e Alemão ( só ele, claro! ) e consegui minhas salsichas, de dois tipos diferentes, com os molhos desejados e duas cervejas muito gostosas. Total: 10 euros.
Feliz. Feliz.
Tive a sorte, inclusive, de conseguir falar em Português num restaurante italiano, pois o garçom falou de futebol e quando soube que eu era do Brasil começou a expressar-se perfeitamente em nosso idioma… Hohoho! Ele disse que havia dividido um apartamento com brasileiros e por isso sabia falar Português.
Então, sempre que eu podia testava se o garçom falava algo de Espanhol, ou de Inglês ( mais fácil ), mas na maioria das vezes não foi necessário o exercício da mímica porque estávamos acompanhados por nosso querido músico, que já domina o Alemão.
Na sexta feira conhecemos o centro histórico.
Existem algumas construções que guardam o estilo anterior à Segunda Guerra Mundial, mas a destruição da cidade pelos bombardeios foi quase total. Quatro casitas de nada sobreviveram e foram restauradas, mantendo o clima de Alemania do início do século passado. O resto é novinho em folha.
Alguns arranha céus criam no horizonte um contorno moderno de espelhos e sombras. Mas eu não gosto de arranha céus… mesmo os bonitos.
Subi em um deles para ver a cidade lá de cima. Tá. Normal. Não foi lá grande coisa. Gosto mesmo é dos bairros cheios de árvores e casas antigas, pracinhas com fontes e chafarizes, beira de rio, parques…
E realmente aí foi possível encontrar, restauradas, casas e edifícios lindos.
Então aproveitamos para passear pela beira do rio, tomar mais uma cervejinha em um lindo bar montado numa barca e ver os patos, as embarcações a remo, a bicicleta-cervejaria manejada por jovens cheios de alegria e cerveja ( funciona como um balcão com um grifo de cerveja onde os jovens pedalam e bebem ao mesmo tempo circulando entre uma ponte e outra da cidade).
E… finalmente, na sexta feira à noite nos dirigimos emocionados para o concerto no Alte Oper de Frankfurt, o antigo Teatro de Ópera, quase totalmente destruído pelos bombardeos e recuperado, graças a campanha cidadana contrária a sua demolição, numa obra que durou quase trinta anos.
As pessoas que lutaram por isso podem estar orgulhosas de sua façanha. O edifício é precioso.
A sinfonia de Mahler abarca a alegría de viver, a união com a natureza, o medo existencial, a confiança e as visões do além. Mahler levou seis anos para completar a composição, que foi interpretada completa pela primeira vez pela Filarmônica de Berlim em 1895.
É simplesmente fantástica!
O primero de seus cinco movimentos, composto em 1888, teve durante algunos anos una existência independente como poema sinfônico. No verão de 1892 Mahler acabou o segundo, terceiro e quarto movimento mas ainda faltava o final que ele queria que fosse apoteótico. Para imprimir mais grandiosidade ele incorporou a parte coral, como Beethoven em sua Nona Sinfonia.
Durante o funeral de um famoso diretor, Hans von Bülow, em 1894, Mahler se inspirou para a conclusão da sua sinfonia, compondo o Juízo Final e a Ressurreição cantados por um coro que representa os santos e bem-aventurados.
O Orfeón Donostiarra é especialista nos pianíssimos e altos necessários para interpretar a peça.
E a solistas convidadas eram simplesmente fantásticas!
Quase duas de horas de concerto, sem parar nem para respirar.
Eu não sei como contar isso, mas imaginem 100 vozes de coro cantando e mais de 120 músicos tocando, às vezes ao mesmo tempo.
A Segunda Sinfonia de Mahler tem momentos de uma doçura encantadora, por exemplo, quando a voz da soprano “conversa” com o oboé. E tem também momentos de grandiosidade alucinante, quando a percursão soa como trovões e todos os demais instrumentos soam ao mesmo tempo.
É surpreendente quando o maestro dirige um som de metais que vem de fora do recinto e quando esses sons começam a mesclar-se com os sons dos instrumentos dentro do palco.
É de tirar o fôlego.
Ficamos imóveis até que os aplausos explodiram. Nem sei por quanto tempo aplaudimos de pé. Eu estava em transe… e nem me recordo de quantas vezes o diretor e as sopranos entraram e saíram do palco.
Bom… só me lembro que em algum momento eu me dei conta de que sonhara tanto poder estar pessoalmente num concerto como esse! E que antes de viver na Europa, enquanto vivia na casa do Poço da Panela escutando os maravilhosos discos de música clássica do Lorde, quando sequer podia dar-me ao luxo de ter um sonho assim, sonhava o sonho dele… acompanhando divertida e fascinada seus movimentos de mãos e imaginária batuta.
Meu pai sonhava dirigir todas as orquestras do mundo. E ele fazia isso muitas vezes, em pé, bem no meio de seu gabinete… com os olhos meio cerrados enquanto os auto falantes do som, em sua máxima potência, derramavam música pelo ar. Sua plateia, composta por 4 pessoas, minha mãe e seus três rebentos, também aplaudia de pé.
Uhaaóoooo! Bravo! Bravo!
Ele sempre tinha que trocar os auto falantes, que nunca suportavam o volume em que escutava os movimentos mais violentos das suas sinfonias e óperas mais queridas.
A sorte é que sem vizinhos, além das árvores e do rio, não havia quem se queixasse do barulho e podíamos “assistir” seus concertos a qualquer hora do dia ou da noite.
Pois sim… enquanto aplaudíamos diretor e orquestra em Frankfurt, com especial carinho ao excelente músico da família, José Luís, o solista de oboé que parecia brilhar entre tantos outros músicos justamente porque seu pai estava ali para homenageá-lo, aproveitei… e também dediquei a noite ao Lorde, meu pai.
E quis, no fundo do meu coração, que realmente existisse outra dimensão nos estágios de vida e que ele pudesse saber-ver-estar-ouvir-sentir tudo naquela noite através de mim.
Sábado acordamos em estado de graça. Passeamos todo o dia pela cidade e decidimos ficar em casa à noite, cozinhar algo e botar a conversa em dia relaxadamente.
Pois foi outra boa decisão. Choveu cântaros e relâmpagos iluminaram a cidade. Uma delícia escutar música em casa e conversar intimidades…
Domingo, pé de cachimbo, areia fina, bate no sino… caminhar pelas ruas, entrar nas igrejas, umas cervejinhas aqui, comida japonesa ali, fazer as malas e voltar para casa.
Madrid estava igual… nem percebeu que fugimos.
Agora ando tirando uns sonhos antigos do baú. Estou querendo assistir em concerto, ao vivo, Carmina Burana. Só não escolhi ainda onde.
Mas já comecei a soprar para os ventos…
Ps: Soube agorinha mesmo, vejam só… “O Alte Oper de Frankfurt é o antigo teatro de ópera da cidade, um edifício carregado de história desde que se inaugurou em 1880 com a presença do kaiser Guillermo II. Nele se produziu a estreia mundial de Carmina Burana, de Carl Orff, em 1937.
Ho Ho Ho…

Acho que pode ser lá mesmo. Já vou conferir a programação!
Esse universo!

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Barcelona

Esse post sobre Barcelona é uma mistura de posts passados. Resolvi publicá-los aqui depois que Roseane, do blog Pavulagem da Ro, pediu-me um toque sobre a cidade, já que ela vai estar ali por uma semana.
Encontrei esses posts em um dos meus arquivos do Cicatrizes da Mirada.

( Clique sobre as fotos para vê-las maiores e melhores.)
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Sonhei por anos a fio estar em Barcelona com olhos-de mar-azul. Um sonho que parecia impossível enquanto escrevia-lhe cartas e e-mails. Agora que estava na hora de transformá-lo em realidade….eu queria mais.
Os seres humanos são assim, não é?
Ou isso é prerrogativa das mulheres?

Queria estar maravilhosa. Então, resolvi emagrecer uns poucos quilos e caber mais folgada no pretinho básico.
Pois sim… nem rezando pelo sangue de Cristo!
A viagem pelos Pirineus Aragoneses, uma semana antes de chegar à Barcelona, arrasaram com a minha “já-muito-fraca-força-de-vontade”.
As tentações eram constantes pois a gastronomia aragonesa é fantástica. As tapas do Bar Pau, na cidade de Jaca, os vinhos, os queijos de Anso (um pequeno pueblo pelo qual me apaixonei perdidamente), que maravilha!

Apesar de ter caminhado bastante, não perdi uma miserável grama.
“Antigamente se creia que las setas eran producto de la union de un rayo de sol y uma gota de rocío”. Isso dizia o cartaz do bar. Um bonito dito popular!
“Antigamente se acreditava que os cogumelos eram produto da união de um raio de sol e uma gota de orvalho”. E esse era o estímulo para que provássemos o mais variado cardápio de cogumelos da região. E com eles, os queijos artesanais e os pães caseiros… era impossível beber água. Era necessário um bom vinho.
E lá vinha o vinho!
Ah… e esqueci de dizer que antes da viagem, já pensando em Barcelona, fui mexer nos cabelos, claro. Qual era a estratégia mais conhecida de todas as mulheres para melhorar a auto-estima, antes do silicone e da lipoaspiração? Ir ao cabeleireiro e mudar o corte ou a cor dos cabelos, certo? Fui… eu não aprendo nunca!
Não entendo por que TODAS as mulheres conseguem um tom acobreado nos cabelos castanhos, mas os meus sempre saem cor-de-rosa, assim meio da cor do mercúrio cromo, assim meio da cor do ridículo!
Mesmo que eu tenha pedido sinceramente, em meu Espanhol claudicante, que as mechas fossem discretas e apontado para a menos espalhafatosa do cardápio, não escapei.
Pois bem…
Depois de uma semana em Jaca, caminhando sob o sol e tomando vários banhos de piscina, a cor das mechas passou do rosa-cromo ao amarelo-ovo-queimado…
A piscina é um dos instrumentos mais recomendados para destruir qualquer cabelo, mas eu seria mais louca se recusasse os prazeres da água com aquele calor!
Resolvi relevar a aparência e aproveitar o passeio. “Tudo dependeria dos meus modelos mentais.” Pensei muito zen.
E Barcelona chegando…
Quando estávamos à caminho da cidade eu ainda estava com idéias de felicidade. Mas a onda de calor chegou ao seu auge e, além de matar pessoas, não me deixou nem pensar…

Ao sair de casa pela manhã, em direção à Casa Batló, já estava suada até na sola dos pés.
E, a medida que caminhava e caminhava e caminhava, a roupa ia grudando na pele, o cabelo arrepiando como o de uma bruxa…e eu só queria um banho, dois banhos, três banhos… queria viver debaixo da ducha para sempre!
A roupa colada no corpo, o cabelo preso num rabo de cavalo e o cansaço extra que o calor emprestava a qualquer movimento, arruinaram com meu humor. Meus modelos mentais zen se transformaram em asas negras flutuando diante dos olhos e escurecendo, contra a minha vontade, momentos que poderiam ter sido magníficos.
Assim, sonhei com Barcelona no outono, no inverno, em qualquer outro momento do ano e de meu astral… mas eu queria sair dali imediatamente. Pensei nisso e logo veio uma lembrança astrológica. Isso! Estava a um mês do meu aniversário… claro!
Além de toda a onda de calor que invadiu a Espanha, estava em pleno INFERNO ASTRAL!!!!
Inferno. Inferno. Inferno. Só de pensar na palavra já me sentia queimar de dentro para fora. Ufa! Isso. Foi isso, claro!
Havia um inferno fora e outro dentro de mim! Não sou fã de astrologia, mas queria uma explicação… qualquer uma!
Bom, em alguns momentos de ferrenho esforço para controlar meu humor da cor de carvão e aproveitar as cores de Gaudí, pensava em meus amigos, em como gostaria de mostrar a todos as imagens que consegui guardar, como a incrível Casa Batlló e seu telhado dragão, suas chaminés de máscaras. Lindo! Parece uma casa construída pelas ondas do mar…
Vale a pena visitá-lo!
Antes era um edifício residencial, fechado ao público. Mas hoje é uma espaço para eventos absolutamente espetacular.
Adoro tudo o que Gaudí fez!
E fui , pela segunda vez, ver ao vivo e a cores a  Sagrada Família.
Para aguentar o calor, comprei um leque que vendiam diante da fila quilométrica, sob um sol de lascar o crânio. Impossível resistir. Comprei o maior de todos.
Sacudi minha discreta comprinha diante do rosto por todo o dia, sem saber que estava “falando”. Quando descobri sua linguagem, o danado dormiu dentro da bolsa a maior parte do tempo.
Imaginem que mensagem eu poderia enviar com um leque negro e rendado, enorme, os cabelos daquela cor e a blusa grudada no peito? É uma pena que o post sobre a linguagem dos leques tenha se perdido por aí… quem sabe o encontro também nos muitos cds de arquivos que tenho!

Voltando à Sagrada Familia

Iniciada em 1882 pelo arquiteto Francisco de Paula del Villar, o projeto era o de uma igreja neogótica.

Em 1883  Gaudí se encarregou em dar continuidade à construção. A partir de seus esboços sobre a forma geral do edifício, o arquiteto foi improvisando a sua construção e criando à medida que avançava o projeto. Ele dizia que a igreja tinha o espírito gótico, mas na sua própria linguagem.
Dizem que ele evoluía enquanto a construía e vice versa.
A obra era sua obsessão. Em seus últimos anos de vida, morava dentro da construção e só saía de lá para conseguir dinheiro e continuar o trabalho.
A fachada atual da Sagrada Família é apenas uma das quatro torres projetadas, e a obra continua ninguém sabe até quando. Totalmente construída com doações, ela avança lentamente.
Não creio que eu viva para vê-la terminada.
A Catedral de Gaudí é alucinante!
Quando a vi pela primeira vez, em 1994, havia menos torres e portas de entrada construídas. Creio ter visto apenas a Puerta de La Natividad. Mas agora boa parte do projeto inicial já está em estado avançado de construção.
A Puerta de La Passion conta com esculturas modernas, de Subirachs, inspiradas na obra de Gaudí que vimos depois, nas chaminés de La Pedreira ou Casa Milá.
Uma das características mais marcantes de Gaudí é a utilização de formas orgânicas em seus projetos. Suas colunas parecem galhos de árvores. Suas esculturas de ferro forjado mostram curvas e desenhos que parecem vivos. Seus telhados parecem sair de um conto de fadas ou bruxas… são cheios de máscaras imensas.

A Casa Milá  ou La Pedreira, como era chamado o edifício pelos antigos habitantes de Barcelona, que o consideravam feio ) é um prédio habitado, mas que pode ser visitado.
É impressionante o que foi capaz de criar o famoso arquiteto naqueles tempos, e admirável que tenham permitido suas inovações.
O pátio, as escadas, a cobertura com suas chaminés-esculturas e um apartamento completo, que foi comprado por um banco e decorado à moda art-deco do princípio do século, estão abertos ao público e valem a fila e o preço.
Eu gosto dele. Parece uma duna molhada, ou um conjunto de cavernas escavadas numa montanha… e quanto mais a gente olha, mas vê coisas!
E, detalhe importante, tem AR CONDICIONADO, meu maior objeto de desejo naqueles dias…
A Catedral de Barcelona, de estilo gótico, além de ser maravilhosa em si mesma, tem um encanto extraordinário, para os catalãos: um Cristo negro. O Cristo de Lepanto.
Segundo conta a tradição, ele estava na galera que levava Don Juan de Áustria, irmão bastardo do Rei Felipe II, durante a famosa Batalha de Lepanto contra os turcos, no século XVI. Falei nesta batalha quando contei sobre a vida de Miguel de Cervantes. Ele também estava lá.

O Cristo é especialmente reverenciado em toda a Espanha e mais ainda na Cataluña.
O coro da catedral, de madeira escura e trabalhadíssimo é alucinante. Pode-se passar horas descobrindo os detalhes esculpidos em suas cadeiras e tronos.
Sempre há muita gente visitando as belíssimas catedrais espanholas e eu, às vezes, queria esses lugares só para mim, pelo menos por uns minutos.
Queria não ter que escutar gente conversando, piscando flashes por toda parte, correndo de um lado para outro sem ver nada.
Queria não ver grupos de pessoas absolutamente desinteressadas no que estão vendo, mas seguindo seus guias muitíssimo interessadas em levar a maior quantidade de fotografias possíveis, mais ainda se forem dos lugares onde é proibido fotografar.
Eu saio do sério com esta gente! Tenho vontade de expulsá-los do templo, como fez Cristo com os comerciantes em sua época. Juro!
Onde estão minha bondade e compaixão?! Tóin!
Eles tem tanto direito de estarem ali quanto eu.
Outra visita que não se pode perder é à Igreja Santa Maria del Mar. Uma igreja também muito linda.
Ela alberga a Virgem Del Mar, padroeira das gentes de todos os mares.
E eu, enamorada por um pirata mediterrâneo, adorei ficar ali, protegida do sol, sentindo um frescor que vinha das pedras antigas, do teto altíssimo, da paz que os templos me dão…

Não sou religiosa mas sinto um encantamento enorme pelos templos. Eles realmente são construídos para propiciar essa sensação de colo macio, de conforto.
Nunca deixo de visitar as igrejas, as mesquitas, as sinagogas… não só pela arquitetura e história, mas também pelo que transmitem de acolhimento.
Quando você estiver viajando por qualquer lugar, na hora do grande frio ou do grande calor, não insista em bater pernas pelas ruas… busque um templo e fique lá por um tempo. E a melhor hora é quando está todo mundo nos restaurantes comendo e fazendo barulho.
Essa é a hora de estar quase sós num templo. Vá por mim…
Ano passado li uma novela muito boa, inspirada na construção desta igreja: Catedral del Mar, de Idelfonso Falcones. Se estiver traduzida para o Português, leiam. Além da trama excelente passada na época medieval, muito se fica conhecendo sobre fatos históricos reais da Cataluña.

Um programa imperdível de Barcelona é o Museu Picasso , que ocupa cinco palácios dos séculos XIII e XIV.
Conta com desenhos e pinturas de seus primeiros anos, além de cerâmicas e esculturas. Assim podemos entender melhor porque ele experimentou tantas mudanças na longa vida de artista.
Imagino que, pintando como pintava aos 14 anos, era impossível fazer o mesmo durante os 78 que lhe restavam de vida… tinha que inovar ou morrer de tédio!

Na porta do museu, um sujeito posava com os turistas fantasiado do quadro, O Arlequim Cubista, cuja orelha era um nariz. Perfeito!

Infelizmente não tenho a foto!
As Ramblas “do Planeta”, como diria Caetano é um lugar incrível. Ali acontece tudo. Na primeira vez que estive ali fiz questão de provar a orchata de chufas, que detestei. Pedi só por causa da música. Nunca mais!

As Ramblas são palco de todos os mímicos de Barcelona. Bailarinas, palhaços, princesas, Colombos, índios de arco e flecha, todos imóveis até que se jogue um moeda. Então eles se movem e agradecem. Um alegria para as crianças e os japoneses…

Eu gosto mais dos músicos. Sempre há músicos fantásticos nas ruas de Barcelona. Mas o melhor das Ramblas desta vez foi entrar no Mercado La Boqueria. Montanhas de frutas e especiarias. Verdadeiros quadros – ao vivo – de cor e alegria. Não resisti às amoras

Encontramos um pequeno bar de tapas e cerveja dentro do mercado. Comemos choquitos ( um molusco) e aspargos verdes a la plancha e dois litros de cerveja… que delícia! Ai!
Vou aproveitar para explicar o que é uma tapa.

Nada de violência, meus queridos, é só um petisco qualquer. Pode ser uma fatia de pão com tomate e presunto crú ou um pratinho de azeitonas, ou de mariscos, ou batatas bravas, salada russa…ou… ou….
A variedade é infinita e deliciosa, e o tamanho também. Tem bares que servem tapas que são verdadeiras porções, generosas no tamanho e no preço! A maioria das vezes nem se cobram as tapas… são presentes do bar. Cada bebida que se pede, eles servem uma tapa.
O nome tem a seguinte história: há muitos anos, uma lei obrigava os donos de bares que serviam bebidas alcólicas a dar um pequeno petisco para que os clientes não ficassem muito bêbados.
Já que na maioria dos bares, os espanhóis bebem em pé, junto ao balcão, o bocadito era servido em um prato pequeno que cobria o copo, como uma tampa.
(tapa em Espanhol)
O costume permanece até hoje.
Os espanhóis nunca saem para beber num único lugar. Eles tomam uma cervejinha aqui, pagam e saem… vão para outro bar, e outro … e outro… e assim saem de bar em bar. Só pagam a bebida e comem de graça. Ho, ho, ho…
Mas é preciso tomar cuidado, pois nem todos os bares servem tapas e nem todos são gratuitos. Por isso é bom saber antes!
Bueno, aprendi rapidinho o costume. E me encanta. Aproveitei todas cervejas e tapas de Barcelona. O pretinho básico que fosse ao inferno, ou ao fundo da mala já que no inferno estava eu!
Elegi uma saia e uma camiseta de algodão para a festa de aniversário de minha prima Paula, que trouxe os amigos de Londres para a “festa” e lá fomos nós para o Club Havana, na Barceloneta, comer, beber e dançar. Mesa reservada com antecedência.
Surpresa!! O ar condicionado era ótimo! No salão principal…
Nos reservaram uma mesa no salão lateral, sem ar… nem condicionado, nem natural. Uma estufa!
Reagimos revoltados ao “dar de ombros” do garçom e na cara de pau sentamos em outra mesa, que também estava reservada…
Mas quem disse que eles podiam ter ar e nós não?
Ao final, descemos para dançar. Escolhemos outra mesa, pois aí já não havia reservas, era de quem chegasse primeiro. Pedimos as bebidas, dispostos a curtir o melhor do Havana Club, a dança cubana!
De repente, percebi que a cada componente da nossa mesa que se levantava para dançar, sentavam desconhecidos com seus copos, como se fosse a coisa mais comum do mundo tomarem nossos lugares. Assim, quando as pessoas de nosso grupo voltavam do salão, já não tinham suas cadeiras. Como assim?
Assim. E pronto.
Ficamos entulhados num canto mínimo, com duas cadeiras para 11 pessoas, incomodando os novos donos da NOSSA mesa. Uma multidão chegando… e o ar condicionado acabando.
Tá bom. Tá bom…
“Modelos mentais, paradigmas…” pensei… “Que bobagem! Divirta-se…”
Tentei… Juro! E estava quase conseguindo, ajudada pela bebida fresca e a dança divertida comandada pelo cubano… mas quando saímos de lá e tivemos que passar mais de 1 hora para conseguir um taxi, a mais de 30 graus, às 3 da madrugada, andando de um lado para outro e tendo que quase lutar com os espertos que se atiravam pela porta do carro que nós tentávamos parar, o mal humor voltou com vontade de ficar.
Então… comecei a odiar Barcelona!


Às 4 da manhã, em casa, pensei que estaria finalmente livre da estufa.
Tomei uma longa ducha e deitei de frente para um ventilador lindo, fininho e vertical.
Isso, ele era apenas isso. Decorativo.
Tinha umas luzinhas de azul neón como olhos de extra terrestres no meio do escuro e soprava com uma elegância…
Pfussss…pfussss…
Ventilar que é bom, nipes nada!
Cadê meu leque???!!!
Não deu para dormir… e o dia seguinte já estava ali.
Nem imaginem minha cara de bom humor durante o café da manhã.
Mas como desistir de tudo ?!
Havia Paula e queríamos mostrar a ela o melhor da cidade.
Fomos ver o Palácio da Música. Bárbaro! Umas cores, uns desenhos!
Mas não pudemos entrar. Estava fechado, para reformas. Valeu ver pelo menos a fachada e comprar os postais.
Acho que o calor trouxe à Barcelona um forum de bruxas!
Ou foi o contrário?!
Então…
Para escapar do forno que estava mergulhada a cidade, um templo ou um museu são as pedidas mais refrescantes. E decidimos pegar a estrada e ir ao Museu – Teatro Gala-Dalí, em Figueres. Fora de Barcelona.
Parece que todo mundo teve a mesma idéia. Depois de uma hora e meia na fila, ao sol, e muito sorvete de limão, finalmente entramos para ver a genialidade do artista.

É impressionante! Desenhos, esculturas, pinturas, frescos nos tetos, composições artísticas muito loucas… valem o sacrifício da fila, embora para o meu gosto, o museu guarde muitas extravagâncias do artista e não os seus melhores trabalhos. Um dos que mais chamam a atenção é um enorme quadro onde se vê o ex-presidente americano Lincoln. Olhando por um “catalejo”, se pode ver os detalhes do quadro e o corpo desnudo de Gala, sua mulher, debruçada sobre uma janela. Também impressiona o fresco do teto de uma das salas do museu, em que Dalí e Gala sobem para o céu.Ou o trabalho que representa a famosa Mae West, com um sofá em forma de boca e uma lareira em forma de nariz.Subindo umas pequenas escadas, o expectador pode ver, em composição com as cortinas, o rosto da atriz.Duvidoso gosto artístico, mas sem dúvida, criativo.

O museu não é só composto de obras provocativas. Dalí era um gênio da pintura e do desenho. Era um show de técnica. Mas ele adorava provocar e viveu o bastante para expressar todos os fantasmas de seu inconsciente, além das mirabolantes expressões de um ego fenomenal.
No dia seguinte desisti das cidades e pedi, pelo amor de deus, um parque. Vento, sombras… AR!
Então fomos ao Parque Güell, idealizado por Gaudí. É lindo… e fresco. Fiquei um tempo escutando um artista que tocava a guitarra espanhola, sob uma sombra deliciosa, cercada de colunas lindas… e senti-me mais feliz. Muito mais feliz…
Vi um dragão colorido sobre uma fonte de água fresca, e me apaixonei por ele. Trouxe uma réplica pequenita para meu invernadeiro. Adoro olhar para ela, pequena e encantadoramente colorida. O dragão é um dos símbolos da cidade de Barcelona. Por todas as lojas de suvenirs ele está, em todos os tamanhos e materiais.

Os bancos do parque, anatômicamente desenhados para aproximar as pessoas e facilitar a comunicação são decorados com pedacinhos de cerâmica de todas as cores e proporcionam ao visitante uma vista maravilhosa da cidade.
Não levem em conta meu humor, expressado tão enfaticamente aqui. Barcelona não teve culpa. A cidade é fantástica, mas estava sob o efeito de uma das maiores ondas de calor que assolou a Europa. Só sugiro aos viajantes que não escolham o mês de Agosto para estarem ali, se puderem.
A umidade do ar, a quantidade de gente nas filas, o sol de derreter os neurônios… é desesperador, pelo menos para mim.
Na volta do parque, um passeio pelo Porto Olímpico, a vista dos barcos à vela e navios de cruzeiro, branquíssimos e enormes, as pessoas de todo o mundo passeando pelas lojas, bares e restaurantes , a praia repleta de banhistas, os topless de todas as idades e tamanhos, e muitas paradas para uma cerveja ou um sorvete ou uma água pelo amor de Deus!
Isso tem que ser muito mais gostoso no Outono ou na Primavera, disso não tenho dúvidas!
No verão os sol só desaparece às 10:00 horas da noite. É um dia largo demais!
Eu já estava querendo a noite, a brisa… os terraços frescos.

Mas desta vez, nem de noite havia brisa. Era o inferno, de verdade!

Então… caminhando e caminhando, dei de cara com a Séphora, uma famosa loja de perfumes. Quase um supermercado de vidrinhos maravilhosamente cheirosos! É de enlouquecer entrar nessa loja.
Agora, meu presente de Barcelona foi a Happy Books. Uma livraria especial, com preços super especiais. Fiquei louca, babando como um cãozinho sedento com tantas ofertas!
Comprei um exemplar de História da Arte, ricamente ilustrado e encapado em caixa e fita de seda, por míseros €15,00, quando qualquer publicação deste quilate vale de €70 a €90 , por baixo!
Voltei “happy woman” para Santorcaz, com meu dragãozinho e meu livro debaixo do braço.
E voltar lá só em Novembro, com frio, se Deus quiser!
Pois, desta vez, nem pensei em dançar a Sardana diante da Catedral.
Quando estive ali, na Primavera de 94, tive o prazer de dançar o baile mais característico da Cataluña… e que eu morro de vontade de repetir.
Desta vez sequer pude ver o enorme grupo de pessoas rodando com as sapatilhas de lona e os braços erguidos, num grande círculo humano a “ciranda” espanhola.
E também não pude escutar um violinista ensaiando suas partituras no átrio em frente a Torre Antiga, no coração do bairro gótico dessa cidade encantada…
Com aquele calor, só turistas estavam nas ruas.
Mas eu volto lá… ah! se volto!
Belo lugar… belíssimo!

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