Arquivo do mês: fevereiro 2005

Aprendiz de Feiticeira…

Ela estava fazendo 21 anos. Uma idade linda!
Comprei vários presentes. Um abrigo novo, roupinhas. E o principal: Don Quixote de La Mancha, em uma edição comemorativa dos 400 anos da publicação do romance de Miguel de Cervantes. Escrevi num cartão – pintado por mim mesma – uma dedicatória bem emocionada!
Pronto?
Claro que não!
Resolvi mudar as cortinas da cozinha. Nunca costurei na vida, mas não custava começar.
Pedi ajuda à vizinha. Tudo bem. Ficou bonita apesar de imperfeita. Deu para disfarçar com um jeitinho brasileiro. Comprei tapetes novos para os banheiros. Espalhei quadros pelo corredor. Passei a semana atrás do sujeito que vinha trocar as duchas, pregar os suportes da rede nova, trazida do Brasil nas últimas férias.
Ela merecia. E merecia também uma festinha…
E eu, como boa mãe neurótica que vê a filha entrando na vida adulta, resolvi fazer uma espécie de despedida da infância-adolescência. Prometi coxinha de galinha, empadas de camarão, brigadeiros coloridos e bolo de chocolate, com cobertura e etc. Cabeça de mãe tem cada idéia!
Nunca havia feito nada disso. No Brasil encomendava tudo… mas não custava tentar!
Pois… peguei uma gripe dois dias antes de começar os trabalhos. Uma moleza no corpo, nariz entupido, dor de cabeça, vontade de ficar sob as cobertas sem fazer absolutamente nada.
Impossí­vel! Tinha que limpar toda a casa, preparar os quartos para ela e os amigos que viriam passar o final de semana, organizar as compras necessárias e o menu de três dias inteiros. Quem manda inventar festa!
Entrei na Internet e procurei as receitas mais simples, pois na cozinha sou quase iniciante. Estou tentando aprender.
Primeiro os recheios das empadas e coxinhas.Temperei o camarão das empadas com sal e limão enquanto cozinhava o frango para as coxinhas e telefonei para o Brasil para conferir as receitas com minha cunhada (uma cozinheira com mãos de fada).
Distraí­-me conversando sobre a famí­lia e… de repente um cheiro de coisa queimada invadiu a sala. Corri para o fogão e estava tudo negro! Nada do molho perfumado de alguns minutos atrás e uma branca fumaça começava a invadir a casa inteira.
Desliguei o telefone e tentei salvar o que ainda tinha cor de frango. Era pouco. Muito pouco. Perdi a graça e guardei os camarões no gelo para o dia seguinte. Estava cansada e doente.
Bueno… no outro dia, assim que terminei de organizar os quartos, fui para as empadas. Refoguei as verduras, juntei o camarão, o creme de leite… e ficou lindo. Agora era só fazer a massa e rechear as danadinhas. Resolvi provar um recheio tão lindo… Hummmm! Sal puro.
Sal! Sal! Sal! Insuportável.
Como assim?
Assim… os camarões estavam mergulhados no sal desde o dia anterior.
Não podia fazer empadas com pasta de sal ao camarão!
Mas ainda tinha que fazer o bolo.
Por que não segui os sinais e desisti de uma vez por todas?
Não, eu tinha que fazer pelo menos UMA coisa que prestasse. Pelo menos o bolo tinha que ficar bom.
Pois não… nem ele.
A massa estava maravilhosa, mas a forma era pequena e eu não pensei que ele ia crescer como o pé de feijão do conto infantil…
O bolo cresceu e cresceu… tanto que suicidou-se pulando para fora do molde como um vulcão em erupção e enchendo o forno com uma massa negra e esfumaçante…
Acham que ainda iria tentar o brigadeiro? E a cobertura? Para botar onde?
Nem pensar! Tive uma crise de riso daquelas que beiram o choro enquanto tentava descolar a forma imersa na larva vulcânica em que se transformou a merda de chocolate, ainda pensando em onde botar as velinhas coloridas que havia comprado. Louca!
Acabei o dia com a auto-estima deitada no chão, com a cara enterrada num buraco escuro!
Resultado… a festa foi mesmo um churrasco em que não meti a mão.
Um amigo dela assou a carne, outra fez a salada, a aniversariante fez a farofa, Pepe fez a batata e os molhos… e saiu tudo saborosí­ssimo! Nada queimou. Nada salgado. Nada ruim.
Arrisquei abrir a garrafa de vinho e dizer com os olhos rasos d´água: Feliz Aniversário, minha filha.
E quando eu penso que no próximo final de semana teremos 16 pessoas para almoçar, tenho vontade de pintar a cara com pontinhos vermelhos e dizer que estou com uma doença contagiosa e de quarentena.
Na cozinha eu não entro por pelo menos dois meses!
Socorro!

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Evas…

Domingo molhado, úmido, cinza. Ficar em casa até que é bom num dia assim, mas almoçar no Chez Georges com as amigas é melhor ainda.
As quatro amigas entram no restaurante bem decorado e fino da cidade, dispostas a comer bem, beber mais e melhor e falar de qualquer coisa, menos de si mesmas.
Rita tem 35 anos, dois filhos e está separada há 3 anos. Quando estava grávida do segundo filho – seu marido havia insistido para que engravidasse pois queria uma famí­lia grande – Rita descobriu que ele tinha uma namorada.
Sim, ele queria uma famí­lia muito grande. A namorada também estava grávida. Iriam dar à luz no mesmo mês e no mesmo hospital.
Rita recusou-se a ficar para ver. Pediu o divórcio com a barriga no pescoço, o coração despedaçado e a auto estima mortinha da silva.
Faz poucos meses que está se recuperando da decepção, às custas de muití­ssimo trabalho numa rotina mais dura que a de uma “mula de roçado”. Acorda às cinco da madrugada e só vai para a cama depois da meia noite. Sua folga quinzenal (quando os filhos ficam com os ex-sogros) é comemorada com um vinhozinho e um bom filme na TV, dormir até as doze e se puder, um almoço com as amigas.
Amor não tem, nem quer. Por enquanto quer distância dos homens. Bastam-lhe os filhos e o trabalho. Stress mais que suficiente.
Júlia tem 34 anos. Casou aos 19, grávida do primeiro namorado. Separou-se aos 27, duas filhas e duas tentativas de suicí­dio.
O ex-marido está noivo de uma dondoca da cidade e vive nas colunas sociais, mas ainda se encontra com ela às escondidas da noiva e das filhas, para um sexo saudoso e cheio de acusações mútuas.
Depois de se agarrarem e transarem desesperadamente, começam as intermináveis brigas. Ele a culpa por ela ser uma mulher exageradamente ciumenta e possessiva. Ela o culpa por ser um degenerado que não pode ver um par de pernas na praia sem ter que segui-las num afã de conquistador barato, um “rato de areia” dos mais nojentos. Ele sai batendo a porta. Ela promete a si mesma que foi a ultima vez. E até a próxima… ninguém sabe até quando seguirão assim. A última foi antes de ontem.
Foi ela quem marcou o almoço. Está precisando desabafar, gritar, beber, comer, contar. Nunca mais vai pensar em morrer por causa daquele desgraçado. Precisa de ajuda, urgente! Amigas, pelo amor de Deus!
Não, melhor nem falar do assunto. Aproveitar para espairecer a cuca, falar dos outros, do livro muito louco que está lendo, do último filme que viu na TV a cabo, antes que aquele pedaço de carne sem sentimentos (e que pedaço!) viesse com aquela conversa de saudades e tesão…
Não! Falar dos outros é melhor. Pronto. Falar qualquer coisa menos da idiota que ela é!
Silvia é solteira. Não pensa em casar-se. Sua independência financeira veio com 22 anos, num emprego público que conquistou num concurso dificí­limo. Poucas horas de trabalho, bom ambiente, bom salário. Tem casa, carro, amigos, viagens, liberdade. Não gosta de sofrer e aos 31, depois de algumas (poucas) tentativas de relacionamento afetivo, desistiu por pura preguiça. Não sente muito a falta de sexo. Às vezes nem se lembra deste detalhe…
E quando lembra, telefona para seu “fornecedor de hormônios”, marca um encontro, resolve a parada e pronto. É bom. Sem promessa e sem cobrança. Está sempre tão entretida com seus planos para as próximas férias…
Ontem mesmo foi na agência e está quase decidida por Nepal.
E depois, amar dá muito trabalho, ela diz com um meio sorriso na cara bonita.
Nenhuma das outras três pode contestar que não.
Que o diga Clarice, 38 anos. Depois de nove anos e meio de um noivado em que os dias foram gastando o amor, se é que amor existia, de forma que não havia qualquer motivo para um matrimônio, exceto o desejo das suas famí­lias, que ao final eram mais noivas que eles dois, o casamento foi o único caminho possí­vel para a separação.
Oito meses depois da festa, que suas famí­lias se esmeraram em fazer es-pe-ta-cu-lar, a farsa finalmente acabou. Ficaram as fotos e um ví­deo, mostrado mil vezes pelas mães-sogras às suas amigas.
Clarice deixou os álbuns com elas. Não queria recordar aquele dia, nem os meses depois dele. Oito intermináveis meses em que tinha que controlar-se para não pular pela janela.
Finalmente, um dia de verão azul, saiu do trabalho, tomou seu carro e dirigiu-se ao aeroporto. Comprou uma passagem para São Paulo, telefonou para o marido e pediu o divórcio. Ele sequer questionou sua decisão.
Clarice esperou um mês que as famí­lias se recuperassem do choque. Nunca a perdoaram. Ele sim. Se não fosse ela quem tivesse tomado a decisão, seria ele…
Claro, iria demorar ainda um pouco. Não tinha coragem de dizer a ela que estava apaixonado por uma colega de trabalho há mais de dois anos e arrependido de não ter evitado o casamento com medo da reação de sua mãe e do pai da noiva.
Queria casar-se com a moça o mais breve possí­vel, assim que sua mãe se acostumasse com a idéia. Já fazem 6 anos que esperam.
Clarice saiu pela vida em busca de amor. Encontrou algo parecido. Inúmeras vezes se apaixonou, nenhuma das vezes a relação deu flores e frutos. Todas acabam depois de dois ou três meses de saí­das. A cada final, um desgaste de energia para criar o clima apaixonado em que desejaria viver.
Depois de uns anos, conformou-se em ter sexo de vez em quando, que de ferro ela não é. Os homens de sua geração preferem as amizades coloridas ao amor propriamente dito.
É que amar dá muito trabalho, dizem.
Clarice vive sozinha, em um belo apartamento, há mais de dez anos. Seu pai nunca mais falou com ela.
Ela já não acredita que vale a pena ir atás do amor. Dá muito trabalho. E por favor, não a chamem de Clarice que esse é nome de mulher doce e sincera. Agora só atende por Clara.
No domingo chuvoso de Abril as quatro mulheres se encontram para o almoço.
Bebem, comem, riem, falam de amenidades, dos livros que lêem, dos filmes que assistem, da vida dos outros, dos que morreram, dos que nasceram, dos que casaram, dos que separaram, dos que se escondem por trás das máscaras, dos que só querem aparecer…
Na mesa lá do outro lado, outras quatro mulheres comem, bebem e riem…
Conversam em tom mais baixo… as paredes tem ouvidos!
Comentam umas com as outras as histórias de Rita, Júlia, Silvia e Clarice, quer dizer,Clara…
Que?
Falar das vidas delas, nem pensar!
Pelo menos não antes do café e do licor…

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Um Programa…

Iraque – A Guerra pelas Mentes
Estou convidando todos os meus amigos do Brasil para um programa que infelizmente eu não vou poder fazer.
Hoje à noite, dia 15 de fevereiro, o programa Observatório da TV, da TV Cultura, debate os perigos que jornalistas correm ao cobrir guerras, sequestros no Iraque e a proposta de Jacques Chirac de que os correspondentes deixem o paí­s devido à insegurança.
Quem estará debatendo o assunto com editores da Folha de SP e Estadão é Paula Fontenelle. Isso mesmo.
A autora do livro que indiquei para vocês ano passado. Não deixem de ver. O programa irá ao ar às 10h30 (SP) e 9h30 (Recife).
Para quem não lembra, convidei-os aqui no blog para o lançamento, na Livraria Cultura, em Recife, setembro passado.
Paula já participou de uma entrevista com Jô Soares, em Dezembro, pois o livro está sendo bem recebido pela crí­tica e parece estar se tornando um livro referência no Brasil para entender o papel da mí­dia nas guerras atuais.
Recuperando parte do post passado, escrevi:
“O assunto do livro é muití­ssimo interessante, pois trata da atuação da mí­dia inglesa durante a Guerra do Iraque.
Paula estava em Londres de outubro de 2002 à outubro de 2003, fazendo um mestrado em Marketing Polí­tico, na Universidade de Greenwich.
O tema escolhido por ela para sua dissertação foi uma análise do conflito do ponto de vista da sua cobertura jornalí­stica e para isso ela entrevistou correspondentes de importantes jornais ingleses, da BBC, ITV News e do Ministério de Defesa Britânico.
A manipulação da mí­dia durante a guerra, tanto de um lado quanto de outro é estarrecedora.
O resultado de seu trabalho ultrapassou o objetivo de uma dissertação de mestrado e transformou-se em um excelente livro.
A linguagem de Paula é clara e de fácil compreensão e o assunto é extremamente instigante. Eu li e adorei!”


Aí­ vocês me perguntam: “E por que esse comercial aqui no blog?”
– Ah… porque o livro é MUITO BOM e a Paula é Borges Fontenelle! Claro! Minha linda e inteligente prima jornalista!
Vejam o debate e depois me contem, por favor!!!

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Para Um Grande Amor: Recife…

Quem tem saudade
Não está sozinho
Tem o carinho
Da recordação
Por isso
Quando estou
Mais isolado
Estou bem acompanhado
Com você no coração.

Um sorriso
Uma frase, uma flor
Tudo é você na imaginação
Serpentina, confete…
Carnaval do amor…
Tudo é você, no coração…
Você existe
Como anjo de bondade
E me acompanha
Neste frevo de saudade
Lálálálá…
Frevo de Saudade
(Nelson Ferreira — Aldemar Paiva)
Acordei hoje lembrando dos meus magní­ficos Carnavais e dos amigos…
O primeiro pensamento do dia foi para o Galo da Madrugada.
Depois a saudade maior foi do Bloco da Saudade, do Quanta Ladeira, do Ceroulas, do Fudidos Porém Unidos, do Nóis sofre Mais Nóis goza, do Lili -Nem Sempre Toca Flauta, do Aurora de Amor… e tantos e tantos…
Ai!
Foto: Galo da Madrugada – Recife

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Há Dez Mil Anos Atrás…

Às vezes a gente quer mudar de pele. Quer deixar de ser quem é. E começa tentando abolir todos os hábitos de sempre. Deixar de comer o que engorda, deixar de beber o que embriaga, deixar de gostar do que gostava. Parece que tudo que a gente faz é “prejudicial à saúde”.
A televisão vai mostrando a cada noite as belas mulheres que usam cremes tais e quais, tomam iogurte quais e tais, fazem exercí­cios regularmente, usam sempre branco virginal. E a gente quer virar lagartixa e regenerar as partes do corpo que a gente pensa que estão apodrecendo. Parece que a gente quer nascer outra vez.
Começar de novo! Ser a rainha do natural! Ficar jovem para sempre. Mudar-se para Shangrilá!
Ainda bem que esta minha fase já passou.
Ou não? Pois… veremos.
Naquela época, há dez mil anos atrás, entre tudo que eu estava tentando deixar para trás… estava o cigarro.
Então recebi um convite de uma amiga de muitos anos para passar um final de semana em sua casa numa praia distante. Aceitei. Estava mesmo precisando mudar de ares, curtir a brisa marí­tima, relaxar. Outra pessoa foi também convidada. Era amiga da amiga mas eu a conhecia de algumas situações anteriores.
Como há muito tempo ninguém estava utilizando a casa, resolvemos ir antes fazer um check up geral, levar alguém que pudesse limpar tudo e ver o que seria necessário comprar.
Depois de algumas horas de trabalho organizando as acomodações e compras que terí­amos que fazer, sentamos um pouco no terraço da casa, de frente para o mar. A moça convidada tirou um maço de cigarros da bolsa e me pareceu que estava brilhando e piscando como o neón das propagandas de Las Vegas….
Acendeu um deles, soltando a fumaça lentamente, com evidente prazer. Senti uma pontada de desejo. “Uma boa tragada agora seria tão bom!” Pensei.
” Pode me dar um, por favor?” Quase sem pensar estendi a mão para ela e pedi, muito à vontade.
“Não. De jeito nenhum.” Ela respondeu no mesmo tom leve e descontraí­do que eu havia usado.
Soltei uma risada com seu humor. Achei engraçada a sua resposta e continuei com a mão estendida e sorrindo… até perceber que ela estava guardando o maço na bolsa. Baforando na minha cara ela disse séria: “Fumante que se preza, anda com cigarro.”
Juro que eu não estava acreditando!
É sério? Insisti desconcertada, ainda tentando sorrir.
Serí­ssimo. Só tenho três na carteira e não vou dar nenhum. Quem fuma que leve seus cigarros! Ela continuou.
Gelei. Nunca imaginei que ela estava negando-me o cigarro “à vera”, acostumada que estava às amigas que tinham senso de humor para brincar de negar favores enquanto os estavam fazendo. Eu tinha uma amiga que sempre que pedí­amos a ela uma informação ou que nos trouxesse alguma coisa da cozinha enquanto jogávamos baralho, ela respondia “Claaaaaro que não!” Rí­amos todas. E na mesma hora ela trazia o que haví­amos pedido ou respondia o que haví­amos perguntado.
Paralisada. Foi como eu fiquei com a resposta da moça. Pensei que era impossí­vel que um fumante negasse um cigarro a outro fumante (ou quase ex-fumante. Que mais dá?) principalmente se estávamos longe de qualquer lugar onde pudéssemos comprá-lo de imediato.
Na minha cabeça, se eu tivesse um único cigarro o dividiria com alguém que não tivesse nenhum e então ambos terí­amos um problema: procurar onde comprar mais.
A vontade de fumar estalou no cérebro com uma força descomunal. A raiva e o desconcerto pintaram de roxo a paisagem. Saí­ andando pela praia até a estrada de asfalto atrás de um lugar onde pudesse comprar o meu miserável e querido ví­cio. Vinte minutos depois encontrei um bar safado, desses de taipa pintada de branco e chão de terra batida. Tinha todo tipo de cachaça, cerveja e caranguejo. Mas cigarros não tinha.
Fui informada que o lugar mais perto onde poderia encontrá-los era na padaria, uns três quilômetros adiante.
Voltei para casa sob o sol abrasador, a vista embaçada por um véu de um violeta-ataúde. Peguei a chave do carro de minha amiga e disse ” Vou ali, já volto.” Não quis demorar-me em explicações. “Onde vai?” Minha amiga perguntou. “Comprar cigarro.” Respondi entre os dentes já entrando no carro. Afinal ela não merecia meu mal humor.
Quando eu estava fazendo a manobra para sair, lá vem a minha amiga com um dinheiro na mão. “Dá para você comprar também para….. fulana?”. (Vamos apelidá-la de fulana? É que essa criatura não merece o belo nome que tem.)
Meu coração cheio de fel respondeu “Não, não dá.” Mas minha boca não obedeceu, e respondi com voz esgarçada de seda lilás. “Claaaaro que sim!”
Minha filha, que estava comigo todo o tempo, dizia que “se fosse ela não comprava de jeito nenhum. Mandava a outra sair para comprar, se ela quisesse.”
Respondi-lhe que não iria jogar lenha na fogueira da minha raiva. Que seria estragar o dia de todos. “Melhor não aumentar a história.” Argumentei.
Assim, comprei cigarros para ela e para mim. Deixei o seu troco e maço sobre a mesa, troquei de roupa e fui dar um mergulho, esfriar a cabeça.
Nem “obrigada” ela me disse, quando voltei.
Passei o resto do dia monossilábica. Não consegui relevar a grosseria da criatura. Mas o trabalho terminou e voltamos para casa.
Pois… depois disso pensei duas vezes se iria ainda aceitar o convite para o final de semana, mas não deu mais tempo de recusar. A minha amiga já havia feito as compras e tí­nhamos apenas que pagar a ela nossa parte. Não ia dar tanto valor assim a um simples cigarro negado, pensei. Mas não estava conseguindo esquecer. O fel foi se acumulando na alma.
No final de semana seguinte, estávamos lá outra vez. Levei um pacote com DEZ maços de cigarros. Havia voltado a fumar com toda a voracidade de quem recomeça a alimentar um ví­cio de muitos anos. É muito pior voltar a fumar do que nunca haver tentado deixar.
Tentei tratar a moça da mesma forma que antes do incidente, mas meu coração já estava frio para ela. Fui educadamente distante por todo o final de semana. Seus assuntos já não me interessavam. Sua risada me parecia falsa. Seu egoí­smo aparecia em cada mí­nimo comportamento. Só para dar um exemplo: A moça levou uma rede. Pois ela pendurava-a apenas quando ia utilizá-la. Quando saí­a, desmontava e guardava dentro do “seu” quarto.
Não relaxei. Não diverti-me. Sua companhia em todos os momentos dos três dias incomodou-me profundamente.
Ao final do domingo, depois que tudo já estava arrumado para irmos embora, minha amiga resolveu servir um último cafezinho, com biscoitos de maçã e canela. Sentamos em volta da mesa e nos servimos. Ela abriu a bolsa e tirou seu maço de cigarros, abriu-o…. e estava vazio.

Meu coração parou. A cena ficou em câmara lenta para mim. O café fumegante nas xí­caras, os biscoitos quentinhos nos pratos, meu maço de cigarros sobre a mesa ao meu lado… e ela SEM CIGARROS!
Pensei se ela teria coragem de pedir-me. Pensei que se o fizesse eu teria a magní­fica chance da roda da vida de negar-lhe. “Fumante que se preza, anda com cigarro!” eu diria sorrindo angelicalmente. Acenderia um para mim e daria uma baforada que enevoasse toda a sala…
Uau! A rainha da prepotência sem cigarros num domingo de tarde, depois de um cafezinho com biscoitos!!?
E a padaria fechada!?
Era perfeito! Lavaria minha alma do fel que a turvara por toda a semana. Oh! Deus! Como o mundo gira rápido!
Enquanto pensava vi por trás da névoa de um filme antigo em preto e branco ela estender a mão para o maço ao meu lado, abri-lo e tirar um… “Meu cigarro acabou, AMIGA. Vou pegar um dos seus, viu?” disse sorridente a bruxa má.
“AMIGA”? Ela sabia lá o que era isso? Pensei, com o veneno escorrendo pelo cantinho da boca.
Em um segundo a névoa se desfez. A cena voltou a velocidade normal da vida real.
“Fique à vontade” respondi muito séria. Agelicalmente séria.
Tum! Fiquei surpresa comigo mesma! Como assim? Como pude deixar escapar uma oportunidade como essa?
Minha filha olhou para mim incrédula. Sua cara me questionava “mãeee?”
E de repente eu percebi uma estranha sensação de alegria, de paz interior. O fel que turvara minha alma desapareceu. A raiva que eu estava dela sumiu. O desprezo que ela me inspirava esvaiu-se na fumaça de nossos cigarros sobre a mesa.
Eu estava aproveitando o momento, saboreando o prazer de não ter sido igual a ela. Estava contente comigo mesma.
De repente meu café ficou mais gostoso. A tarde mais bonita. Meu corpo mais leve.
Desfrutei destas sensações por um longo tempo…
Voltei para casa cantarolando “como uma onda no mar…”
Ela nunca se transformou numa amiga. Naquela tarde desisti dela. Pulverizei sua existência num passado longí­nquo.
E  este ano eu vou deixar de fumar. De verdade!
O mundo nem sempre gira tão rápido como gostarí­amos. Mas gira!

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