Arquivo do mês: setembro 2005

Ela Não Se Chamava Emília…

Há quase meio século atrás, Cabelinho de Espiga de Milho tinha o mesmo tamanho e a mesma idade que eu.
E, enquanto eu era morena e tinha os cabelos muito curtos, maltratados pelo mesmo barbeiro que pelava meus irmãos como se eles fossem soldados em vias de serem enviados à guerra mais próxima, ela tinha belos, longos e lisos cabelos da cor dos raios de sol, olhos azuis e sobrenome inglês. Era quase igual às bonecas das vitrines da Lojas 4.400, a loja rainha da Rua da Imperatriz de minha infância.
Mas ela não era uma bonequinha de loja, nem de livro. Era real e definitivamente a rainha da rua. Falava a língua do P com perfeição, xingava quando perdia no jogo, atirava pedras, roubava frutas das árvores alheias, dava ordens aos meninos que lhe seguiam por toda parte. Era mais autoritária que qualquer Imperatriz. E eu gostei dela.
Quando chegamos em Casa Forte, Cabelinho de Espiga de Milho transformou-se em minha melhor amiga. Inseparável amiga. Tínhamos 5 anos.
Éramos diferentes das outras meninas da rua. Enquanto elas brincavam de bonecas e comidinhas, nós fazíamos guerra de bolas de lama, lutas de mocinho e bandido, campeonatos de bola de gude, queimado e gamão, criávamos teatros de marionetes, fomentávamos as corridas de bicicleta pelas ruas do bairro…
Estávamos sempre entre os meninos.
Enquanto passavam os anos e eu deixava os cabelos crescerem em indomáveis e fartos cachos castanhos, ela ia cortando os raios de sol cada vez mais curtos. Eu chegando ao metro e setenta, ela parando a pouco mais do metro e meio. Eu romantizando a vida. Ela racionalizando-a. Eu escrevendo cadernos de poesias. Ela lendo novelas policiais. Eu lenta e desarrumada. Ela diligente e ativa. Era a melhor ajudante da mãe para criar os quatro irmãos que nasceram depois dela. Mas continuávamos inseparáveis. Éramos como irmãs e nos apresentávamos, com todo orgulho, assim: “Somos gêmeas, idênticas. Não vêem as semelhanças?”
Estudamos juntas até a entrada na faculdade, quando a vocação de cada uma nos separou. Eu fui estudar Psicologia, ela Engenharia. Mas a amizade continuou para sempre.
Quando tínhamos 19 anos, caiu a bomba sobre nós. Cabelinho de Espiga de Milho estava com câncer.
Eu me debulhei em lágrimas infelizes. Ela se preparou para a luta.
Seu cabelo caiu todinho, fez mil e uma cirurgias investigativas. O tratamento foi violentíssimo, mas ela ganhou. Nunca deixou que a doença tomasse conta do seu espírito. Era indomável.
Depois disso, o cabelo cresceu mais escuro, os olhos ficaram mais duros e determinados, mas ela deu a volta por cima e sem perder uma prova da faculdade, formou-se e transformou-se numa excelente profissional. Sua capacidade de mando continuou por toda a vida. Sua força vital também. Ganhou mais duas batalhas contra a doença, que insistia em dobrá-la. Nunca o conseguiu.
Casou-se. Adotou um menininho lindo como filho querido, já que a capacidade de ser mãe estava limitada pelas muitas radiações que tomou na vida.
Depois, não sei precisar exatamente quando, as contingências da vida de cada uma, profissionais e pessoais foi nos afastando da convivência diária, dos programas sociais…
Apesar de vivermos na mesma cidade, víamos-nos tão pouco! Falávamos por telefone e prometíamos encontros nunca marcados.
Meses atrás, por casualidade, estive com seu irmão em Madri. Ele disse que o câncer havia voltado e que desta vez a luta estava mais acirrada, a miserável tinha tomado conta de seu ponto mais forte: o cérebro.
Não havia mais nenhuma saída.
Recebi um e-mail de sua sobrinha uns dias atrás… Nele uma foto de minha amiga de toda a vida, com cabelos curtos e escuros (talvez postiços) ao lado de um texto de despedida com data de nascimento e de morte.
Enquanto eu fazia mechas de luz nos cabelos castanhos para comemorar os 50 anos, exatamente no dia 15 de setembro passado, minha querida e lutadora amiga, faltando apenas dois meses para cumpri-los também, adormeceu para sempre.
Minha primeira e eterna amiga morreu no dia do meu aniversário de 50 anos!
Há uma semana a lembrança de seu cabelinho de milho, sua voz, seu sorriso, o encanto de seus olhos azuis de boneca me acompanham por toda a casa… e nessas lembranças não temos os cinquenta anos que já vivemos, juntas ou separadas…
Temos os cinco anos de quando nos encontramos pela primeira vez, numa rua de barro e lama de Casa Forte.
E esta é e será a minha eterna saudade…

 

Escrevi esse post para Cristina Gatis Soares.

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Tarifa Conquistou-me…

Pois é… agora voltei mesmo.
O corpo se queixa da mudança brusca de temperatura. A saudade do mar aperta. A vontade de fumar também.
Pois é… deixei de fumar.
Hum… isto é, estou deixando. Ainda não posso falar no passado. Só fazem quatro dias! Nem vou tocar neste assunto agora, pois o medo de não conseguir me assalta e a ansiedade vai lá na lua!

Melhor contar sobre Tarifa. Sim. Melhor, sim.
Apesar de já haver escrito algo sobre ela durante a semana santa, desta vez pude explorar melhor a cidade e seus arredores.
Tarifa é um pueblo especial para mim. Primeiro, porque ali nasceu olhos-de-mar-azul e lá sua história permanece entranhada nas antigas e estreitas ruas iluminadas pela amarelada luz dos lampiões durante as noites ou pela luz de um sol extraordinariamente brilhante durante os dias.
Tarifa tem sempre uma luz especial, seja qual for o momento em que alguém assome “a la calle”.

Além disso, sua situação geográfica é privilegiada. Está situada entre os dois mares, o Atlântico e o Mediterrâneo e por isso oferece um espetáculo marítimo extraordinário. Por seu horizonte desfilam todas as embarcações que entram ou saem do Mediterrâneo, desde lanchas de passeio, veleiros e botes de pescadores a enormes navios de cargas ou de guerra.

É um eterno ir e vir de embarcações com bandeiras diversas singrando as águas azuis do Estreito de Gibraltar, embora esse nome não faça jus ao verdadeiro “estreito”. A parte mais estreita realmente não fica em Gibraltar e sim entre Tarifa e Punta Cires, no Marrocos, com 14 quilômetros de largura.
Pero… batizaram-no os ingleses e não os espanhóis ou os marroquinos. E assim ficou, até quem sabe quando…


Bueno… apesar de meu sangue genuinamente pernambucano, acostumado as tépidas águas das praias nordestinas, não pude deixar de aproveitar os mares de Tarifa, embora a temperatura de suas águas oscile entre absurdos 16 a 22 graus, dependendo do vento que sopre.
Ah… esse personagem é o mais importante de Tarifa. O vento.
Todos acompanham com imenso interesse as previsões meteorológicas, seja pelo jornal, rádio ou TV.
É que nesta cidade o vento é quem organiza a vida das pessoas.
Se há vento poente, a cidade se move de uma forma, as pessoas fazem algumas coisas. Se sopra o levante, os planos mudam e as pessoas fazem coisas distintas. E isso é sério!
Desde muito pequenos os habitantes já aprendem a respeitar os ventos de Tarifa. Eu achava meio exagerado esse negócio de falar do vento todo-dia-e-o-dia-todo. Até que entendi… Quando o levante começou a açoitar a cidade e não dava nem para caminhar pela rua!
Ele sopra com uma força descomunal! Os barcos não podem sair a pescar, nem os adeptos a esportes de vento podem sair ao mar. É muito arriscado.
Mas, se o vento é “flojo”,isto é, fraquinho, seja poente ou levante, as praias se enchem de gente. À Praia dos Lances, no Atlântico, se vai quanto o vento é levante, isto é, vindo do Mediterrâneo. Pois se um desavisado insiste em ir com vento forte, vai comer ondas de fina e branca areia até pelos ouvidos. Se ousa ir com vento poente, vai morrer de frio.
Com este é melhor se dirigir à Praia Chica, que é mais protegida do vento gelado que sopra desde o Atlântico, mas em compensação a agua é muito mais fria devido às correntes e profundidade de suas águas. Para mim era um suplício enfrentar os primeiros minutos de um mergulho, mas depois… a saudade dos banhos de mar ganhava sempre a luta entre os arrepios de frio e o prazer de poder mergulhar e nadar um pouco.
Não perdi um dia sequer de praia. Nem mesmo quando o pueblo amanheceu negro e chuvoso. Nada mais delicioso num dia assim que abrigar-se bem e sair para uma bela caminhada pelo passeio marítimo que circunda as praias e rochas, o castelo e as muralhas da cidade antiga.
Outra delicia foi passar o dia visitando os pequenos povoados próximos.

Estivemos em Vejer de la Frontera, uma cidadezinha linda no alto de uma colina, com uma vista impressionante do Estreito e de Tanger, do outro lado do horizonte. Daí fomos a Barbate, onde comi uma porção de delícias como almoço: polvo, lula com alho frito e atum com batatas, vinho e etc…
De sobremesa um assassino flan de figos confeitados ao vinho Pedro Jiménez. Uma coisa de matar de gosto uma pessoa normal, imagine uma fã de doces como eu.
E para fechar com chave de ouro, uma tarde inteira de sol e mar cristalino em Zahara de Los Atunes, só com a parte de baixo do biquíni, numa gostosa e descontraída experiência de top less, aos “quase” 50 anos! Fato absolutamente normal aqui, para mulheres de qualquer idade e manequim. Peitos de todos os tamanhos e formatos passeiam pela praia e tomam sol sem que ninguém os examinem com olhos críticos ou maliciosos. Uma delicia de liberdade e prazer.
Olha só uma das paisagens de Barbate!
Bronzeadíssima, fui convidada a assistir a abertura da Féria Anual de Tarifa, com a entrada na cidade da Virgem de la Luz, acompanhada por 577 cavalos montados por velhos e jovens, homens e mulheres, todos vestidos à carater, com a vestimenta de gala do campesino tarifenho.
Para isso vesti um belo traje de cigana, com rosa no cabelo e xale no pescoço. Estava a própria andaluza!
Me encantei tanto que não queria mais tirá-lo.
He he he…

Ainda bem que tive a oportunidade de usá-lo outra vez num jantar oferecido por uma das “casetas” armadas na Féria para comemorar a festa da patrona da cidade.
Linda festa!
A maioria das mulheres e meninas vestidas com seus alegres e coloridos trajes, as músicas sevilhanas dançadas com maestria, a manzanilla rolando solta em todas as mesas.( Manzanilla é um tipo de vinho branco, servido muito gelado.)
Eu estava tão integrada ao grupo que ninguém podia imaginar que eu era uma brasileira “infiltrada”.
Só não arrisquei dançar no palanque porque fiquei simplesmente babando com a performance das mulheres. Tanto que uma delas ofereceu-se para ensinar-me numa próxima visita à cidade.
Oferecimento aceito, óbvio.
Um encanto foi assistir uma apresentação da dança típica de Tarifa, com homens e mulheres cantando e tocando as guitarras e os pedaços de bambu ( as cañas ), numa demonstração clara de que a tradicional vida do campo pernamenece viva ali, apesar da invasão de estrangeiros atrás de férias de sol e mar, iguais em quase toda parte do planeta.
A casseta mais tradicional passava as noites tocando e cantando a Chacarrá, música e dança específica de Tarifa. Emocionante e diferente de tudo o que já vi até agora na Espanha.
Depois eu conto mais sobre roupas, costumes, gastronomia…e minha última descoberta: música!

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Olé…

Ainda atordoada pela diferença de clima e de paisagem, acabo de chegar em casa. Apesar de adorar meu jardim e meu monte, ver o Estreito de Gibraltar diante da janela é sempre uma emoção especial.

Durante minhas pequenas (snif!) férias em Tarifa, com visitas a Vejer de La Frontera, Cabo Trafalgar, Barbate, Zahara de los Atunes e Praia de los Alemanes tive poucas oportunidades de acessar o blog, mas fiquei contentíssima com os carinhosos comentários que encontrei.
Muito gostoso mesmo!
Realmente eu aproveitei muitíssimo cada momento! Basta ver a foto ao lado, com um vestido de espanhola, pronta para uma noite de Féria Tarifenha, a festa anual da cidade.
Eu bem que avisei que ia “virar” espanhola por uns dias!
Adorei!
Era divertidíssimo observar a surpresa dos amigos e da família com a brasileira “novata” parecendo uma genuina sevilhana, morena dos olhos castanhos, com leque e tudo! Um arraso!
Mas…depois eu conto o resto.

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