Há quase meio século atrás, Cabelinho de Espiga de Milho tinha o mesmo tamanho e a mesma idade que eu.
E, enquanto eu era morena e tinha os cabelos muito curtos, maltratados pelo mesmo barbeiro que pelava meus irmãos como se eles fossem soldados em vias de serem enviados à guerra mais próxima, ela tinha belos, longos e lisos cabelos da cor dos raios de sol, olhos azuis e sobrenome inglês. Era quase igual às bonecas das vitrines da Lojas 4.400, a loja rainha da Rua da Imperatriz de minha infância.
Mas ela não era uma bonequinha de loja, nem de livro. Era real e definitivamente a rainha da rua. Falava a língua do P com perfeição, xingava quando perdia no jogo, atirava pedras, roubava frutas das árvores alheias, dava ordens aos meninos que lhe seguiam por toda parte. Era mais autoritária que qualquer Imperatriz. E eu gostei dela.
Quando chegamos em Casa Forte, Cabelinho de Espiga de Milho transformou-se em minha melhor amiga. Inseparável amiga. Tínhamos 5 anos.
Éramos diferentes das outras meninas da rua. Enquanto elas brincavam de bonecas e comidinhas, nós fazíamos guerra de bolas de lama, lutas de mocinho e bandido, campeonatos de bola de gude, queimado e gamão, criávamos teatros de marionetes, fomentávamos as corridas de bicicleta pelas ruas do bairro…
Estávamos sempre entre os meninos.
Enquanto passavam os anos e eu deixava os cabelos crescerem em indomáveis e fartos cachos castanhos, ela ia cortando os raios de sol cada vez mais curtos. Eu chegando ao metro e setenta, ela parando a pouco mais do metro e meio. Eu romantizando a vida. Ela racionalizando-a. Eu escrevendo cadernos de poesias. Ela lendo novelas policiais. Eu lenta e desarrumada. Ela diligente e ativa. Era a melhor ajudante da mãe para criar os quatro irmãos que nasceram depois dela. Mas continuávamos inseparáveis. Éramos como irmãs e nos apresentávamos, com todo orgulho, assim: “Somos gêmeas, idênticas. Não vêem as semelhanças?”
Estudamos juntas até a entrada na faculdade, quando a vocação de cada uma nos separou. Eu fui estudar Psicologia, ela Engenharia. Mas a amizade continuou para sempre.
Quando tínhamos 19 anos, caiu a bomba sobre nós. Cabelinho de Espiga de Milho estava com câncer.
Eu me debulhei em lágrimas infelizes. Ela se preparou para a luta.
Seu cabelo caiu todinho, fez mil e uma cirurgias investigativas. O tratamento foi violentíssimo, mas ela ganhou. Nunca deixou que a doença tomasse conta do seu espírito. Era indomável.
Depois disso, o cabelo cresceu mais escuro, os olhos ficaram mais duros e determinados, mas ela deu a volta por cima e sem perder uma prova da faculdade, formou-se e transformou-se numa excelente profissional. Sua capacidade de mando continuou por toda a vida. Sua força vital também. Ganhou mais duas batalhas contra a doença, que insistia em dobrá-la. Nunca o conseguiu.
Casou-se. Adotou um menininho lindo como filho querido, já que a capacidade de ser mãe estava limitada pelas muitas radiações que tomou na vida.
Depois, não sei precisar exatamente quando, as contingências da vida de cada uma, profissionais e pessoais foi nos afastando da convivência diária, dos programas sociais…
Apesar de vivermos na mesma cidade, víamos-nos tão pouco! Falávamos por telefone e prometíamos encontros nunca marcados.
Meses atrás, por casualidade, estive com seu irmão em Madri. Ele disse que o câncer havia voltado e que desta vez a luta estava mais acirrada, a miserável tinha tomado conta de seu ponto mais forte: o cérebro.
Não havia mais nenhuma saída.
Recebi um e-mail de sua sobrinha uns dias atrás… Nele uma foto de minha amiga de toda a vida, com cabelos curtos e escuros (talvez postiços) ao lado de um texto de despedida com data de nascimento e de morte.
Enquanto eu fazia mechas de luz nos cabelos castanhos para comemorar os 50 anos, exatamente no dia 15 de setembro passado, minha querida e lutadora amiga, faltando apenas dois meses para cumpri-los também, adormeceu para sempre.
Minha primeira e eterna amiga morreu no dia do meu aniversário de 50 anos!
Há uma semana a lembrança de seu cabelinho de milho, sua voz, seu sorriso, o encanto de seus olhos azuis de boneca me acompanham por toda a casa… e nessas lembranças não temos os cinquenta anos que já vivemos, juntas ou separadas…
Temos os cinco anos de quando nos encontramos pela primeira vez, numa rua de barro e lama de Casa Forte.
E esta é e será a minha eterna saudade…
Escrevi esse post para Cristina Gatis Soares.