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Recuerdos…

Férias…


Lendo Paul Auster em Tarifa. La Invención de la Soledad.

Auster é minuncioso na descrição do pai morto…
Traz-me de volta doídas lembranças.
O Lorde, meu pai, aparece a cada segundo em minha lembrança durante a leitura da primeira parte do livro: O Homem Invisível.
Entre os murmúrios do vento e das ondas que lambem a fina e branca areia tarifenha, gaivotas gritam o nome dele e me transportam para outros ventos, outro mar, outros tempos.

Quanto de compaixão será necessário para entender, ou apenas esquecer, sua estranha e cruel forma de amar?

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O Lorde e Seus Ví­cios…

O Lorde fumava. De tudo. Cigarros, cachimbo, charutos. Era um fumante inveterado, desses que desperta no meio da noite para acender um cigarro. Uma vez dormiu com um entre os dedos e quase provocou um incêndio na cama.
Era seu ví­cio incontrolável. Fumava Hollywood sem filtro, charutos importados de Havana e fumos ingleses like Half&Half.
Além do prazer que sentia em fumar, tinha verdadeira adoração por seus cachimbos importados. Passava horas limpando-os. Tinha até mesmo uma caixinha de instrumentos especiais para a tarefa. Era como um ritual que executava com paciência e cuidado, cantarolando os Cantos Gregorianos ou as Cantatas de Bach, nos domingos de chuva pesada e caudalosa que Casa Forte nos dava de presente.
Eu gostava da imagem que via. Tanto que guardo-a até hoje na lembrança. A música, o janelão aberto para o grande sí­tio de árvores centenárias, o braço do rio Capibaribe colado no muro, coberto por baronesas enormes. E a figura de meu pai, recortada nessa paisagem, imerso em suas paixões. A música, os livros e o tabaco.
Até muito tempo após sua morte, o gabinete tinha o cheiro do Lorde. E, apesar do que possam pensar, ele não cheirava mal. Cheirava a um Lorde. Um mistura de colônia inglesa, linho, tabaco e conhaque. Um cheiro que ” sinto” ainda, basta recordar de sua figura única.
Ele tinha uma coleção de cinzeiros espalhada pela casa digna de museu. Vinham de todos os paí­ses que havia visitado, de todos os hotéis onde havia se hospedado, de quase todos os restaurantes onde havia comido. Era um Lorde, mas adorava roubar cinzeiros. Tinha-os de madeira, chumbo, cobre, cristal, cerâmica, louça,porcelana…
Nenhum deles era enfeite. Usava todos. E a maioria tinha história.

A melhor de todas foi a que lhe aconteceu num restaurante tradicional de Recife. Um desses restaurantes finos, cheio de frescuras, como ele gostava.
Depois de comer com um grupo de amigos, foi servido o café, os licores e conhaques e meu pai sacou da caixinha de couro um de seus perfumados charutos. O maitre trouxe um cinzeiro lindo, com a marca do restaurante. Pronto. Esse estava morto. Mais um fadado a fazer parte de sua coleção.
Depois de pagarem a conta, quando meu pai já se dirigia para a porta, com o cinzeiro dentro do bolso do paletó, o maitre se aproximou com um embrulho na mão.
– Com sua licença, doutor. Leve esse que está limpo.
– Como? Meu pai perguntou, surpreso.
– O cinzeiro, doutor. Esse aqui está limpo. E mostrou o embrulho bem arrumado em um guardanapo de papel.
O Lorde avermelhou de constrangimento. Mas não se encolheu. E com sua voz grave e séria, perguntou:
– Você quer estragar minha coleção é, rapaz?
Aí­ foi o maitre quem ficou surpreso.
– Como doutor?
– Minha coleção é de cinzeiros roubados, rapaz. Não doados. Roubados, entendeu?
– Sim senhor… entendi senhor.
E meu pai saiu do restaurante com seu passo londrino, de cabeça erguida, como se o ofendido tivesse sido ele.
Voltou ao mesmo restaurante inúmeras vezes. O maitre sempre o recebia com um sorriso cúmplice de velhos amigos, donos do mesmo segredo. E eram.

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O Lorde e a Princesa…

Parece brincadeira, mas não é. Meu pai achava mesmo que sua mulher era uma princesa. E que ela deveria viver numa torre, para evitar desgraças no reino com a sua extraordinária beleza. Por isso, ele construiu uma. Não era alta e de pedra como as de contos d´antanho, mas era rodeada de densa floresta.
Não creio que escondê-la fosse a intenção da casa, claro. Mas ajudava bastante a manter o isolamento da famí­lia.
Minha mãe a adorava, mas queixava-se por passar semanas sem ver uma alma viva passar. Sempre esperou que sua casa fosse apenas a primeira de muitas que viriam depois. Nunca vieram.
Ele não. Ele torcia para que não viesse ninguém. Adorava o mato, o silêncio, o espaço. Adorava que seus irmãos e amigos perguntassem, horrorizados, como tinham coragem de viver ali, longe de tudo.
“Tudo o que?” Perguntava o Lorde com voz grave e condescendente, como se dissesse “que pobre de espí­rito, coitado.” E levava os assustados visitantes pelos sendeiros de sua “propriedade-quase-rural”.
Plantava uma horta no quintal, que adulava quase todos os dias. Criava um cachorro negro e enorme com quem brincava de jogar os sapatos na noite escura, para que os encontrasse e trouxesse-os de volta, depositando-os delicadamente diante de seu trono de vime, no terraço mal iluminado por lamparinas de ferro. Inveriavelmente ele escutava alguma peça de música clássica nas maiores alturas. Era bom não ter vizinhos.
Na verdade, ele estava certo. Era melhor assim. A casa era de sonhos! Vaga-lumes enfeitavam o jardim como pequenas estrelas ao alcance da mão. Grilos e sapos faziam a festa todas as noites. E durante o dia, o sol nunca esquentava muito no Poço da Panela porque as árvores não deixavam. Sopravam seu perfume úmido e verde por todo o bairro.
Em nossa casa mais… pois o jardim era de grama e roseiras e jasmins e árvores frutí­feras. Jambeiros imensos, azeitonas pretas centenárias, palmeiras de toda a vida. E ainda possuía os canários, sabiás, patativas e galos de campina, que faziam seus concertos com exclusividade para o Lorde e sua Princesa. Nada de gaiolas… criava todos soltos, com acesso livre às terrinas de barro para água e pequenos grãozinhos de comida espalhados por toda parte.
A casa era idolatrada pelos dois. Mas…a Princesa tinha gostos plebeus. Adorava arrumá-la e mudar tudo de lugar. O Lorde ficava louco. Ela ria.
Ele dizia que ela não precisava fazer aquele serviço. Mas ela gostava e trabalhava com prazer e alegria.
Arquiteto de profissão e Lorde por personalidade, meu pai escolhia com cuidado cores e objetos. Um quadro ali, cujo vermelho dava um toque de luz sobre o cinza dos sofás de couro camurçado, um espelho acolá, que dava a sensação de maior espaço…
Minha mãe vinha e botava o sofá do outro lado, embaixo da janela. Pegava o quadro e levava para a outra sala. Pendurava-o sobre a mesinha do telefone.
Ele ficava louco. Ela ria.
Não que ela não concordasse com seu gosto, mas é que tinha faniquito para mexer e mudar as coisas. Cada vez que limpava um cômodo, queria mudar tudo. Era impossí­vel para ela viver num lugar que fosse igualzinho por toda a vida. Assim, de vez em quando, encostava minha cama na parede e eu, acordando à noite para ir ao banheiro e querendo sair pelo lado de sempre… tóin! metia a cara numa parede desconhecida. Gritava de pânico. Por segundos achava que era um pesadelo… ou que estava prisioneira em alguma masmorra! (ah, Freud!)
Ele implorava para que ela respeitasse pelo menos seu escritório. Pois sim… ela respeitava. Quase nunca o limpava. Qual era a graça de limpar e não poder mudar as coisas daqui-prali ?
Hunf!
Assim, as coisas do Lorde, suas caixas de ébano e marfim, suas esculturas africanas, suas réguas de todos os tamanhos e formas, suas canetas de nankin, ele e só ele manuseava.
Mantinha centenas de livros e discos espalhados nas estantes, cadeiras e bancos; rolos e rolos de projetos dormitavam sobre a enorme mesa de desenho. Ele era assim.
O engraçado é que ela era muito organizada e sabia onde estava cada um dos objetos da casa. Ele era extremamente desorganizado e misturava tudo nas gavetas. Mas estavam onde ele queria que estivessem: na sua bagunça.
Só que…quando queriam uma conta a pagar ou algum documento importante, ela era requisitada para procurar nas coisas dele. Ele nunca sabia onde havia guardado. Ela dizia que aquele lugar parecia um ninho de bicho. Às vezes, nunca encontravam o “objeto da busca”.
Ela ficava louca. Ele ria.
Mas o Lorde e a Princesa amavam-se como nenhum outro casal que eu conheci.
Se entendiam por telepatia.
Ela fazia a lista das compras e esquecia de pedir alho. Quando descobria, falava em voz alta na cozinha, e ele “escutava” lá no supermercado. Quando ele chegava dizia ” Você esqueceu de botar alho na lista, quando já estava no caixa, pensei que podia não ter e fui buscar.”
Ela dizia que tinha mandando a “mensagem”.
Quando ele chegava com um presente, que nunca precisava de data certa para chegar, testava ” Adivinha o que eu trouxe para você?” Podia se um livro, uma camisola, uma jóia. Invariavelmente ela acertava, a danada.
Um vez ele esqueceu o presente no carro. Quando estávamos jantando, ela disse “E meu presente? Está no carro? É um relógio?” Era.
Ele ficava louco. Ela ria.
Um dia tiramos a prova dos nove. Ela lia seus pensamentos! Estávamos no terraço da casa da praia e ele lá longe, pescando, com um copo de cerveja na mão e sem camisa – ele sempre esquecia a lordice no Janga. Aí ela riu e disse só para nós ” Ele vai trocar o copo de mão e coçar o umbigo.” E foi exatamente o que ele fez.
Hahaha…saí­mos correndo para contar-lhe que ela estava lendo seus pensamentos.
Ele ficava louco. Ela ria.

Um dia, numa das muitas alterações nos móveis da casa, inundada inúmeras vezes pelo rio Capibaribe, o Lorde, maquiavélicamente, mandou construir camas cujos espelhos eram chumbados na parede. Todas.
E também fez armários de concreto. E mesas de madeira maciça, pesadí­ssimas. Impossí­veis de serem mudados de lugar como ela gostava.
Por mais bonitos que fossem, ela perdeu o gosto e a alegria. Aos poucos foi deixando de arrumar, de botar flores, de rir.
Ele ficou louco quando viu que a casa era muito mais bonita antes… só porque ela ria.
Quando percebeu que não valeu a troca, era tarde…
*Still Life With a Cupboard – Carmen Laffn

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O Lorde e Ela…

Meu pai tinha gostos requintados.
Gostava de barcos a vela e golf. Jogava tênis e tocava piano. Sonhava ter um veleiro e por isso era sócio do Cabanga Iate Club, mesmo sem barco. Freqüentava o Caxangá Golf Club da Várzea e falava Inglês com sotaque londrino, mesmo antes de ir à Inglaterra.
Era um lorde…
Como arquiteto, ele dizia, tinha que estar no lugar e na hora certa para ganhar um bom projeto, sem jamais parecer que precisava dele. Exactly!
Minha mãe era mãe. Dona de casa e mãe. Seus filhos eram a sua glória, a casa própria seu sonho realizado. O resto era “supérfluo”. Na juventude estudava belas artes e pintava lindamente. Era ceramista também, mas não acreditava no próprio talento e sua arte nunca saiu de casa. Cuidava das rosas e jasmins, de nós e do homem da sua vida com uma dedicação tão extremada que na famí­lia a chamavam de Amélia.
Mas ela era uma leoa. Uma linda leoa.
Ele também era um leão e sentia por ela os ciúmes mais ferozes que já vi na vida.
Pois sim… meu pai de lorde só tinha os gostos. Na intimidade do lar, muitas vezes, agia como um homem das cavernas. Gostava de seus livros e sua música, seus cachimbos e seus conhaques…mas não sabia muito bem se mover nos papéis de pai e marido. Era louco por ela, mas seus ciúmes também eram loucos.
Amava-nos, mas nunca nos disse. E isso não tinha explicação.
Quando saíam juntos, bastava que ela soltasse uma das suas risadas cristalinas e maravilhosas, para ele fechar a cara e querer ir embora.
Um vez, estávamos no Caxangá Golf Club, uma daquelas manhãs maravilhosas de sol e brisa fresca. Meus pais estavam rodeados por seus amigos ingleses, italianos e japoneses com as respectivas madames, quando se acercou um garçom para tomar nota das bebidas. Ele cantava o pedido, para animar a gente a beber:
– Uma cerveja…uma caipirinha… uma Coca-Cola…uma Fanta Laranja ou uma Soda Limonada? Assim… um por um.
Na vez da minha mãe, ela trocou os cabos. Ia pedir uma Fanta, decidiu por uma Soda. E pediu, com seu sorriso maravilhoso:
Uma Foda, bem gelada.
O silêncio que se seguiu e a cor esverdeada que se espalhou pelo rosto do meu pai durou eternos segundos, até que o garçom respondeu, impassí­vel:
Pois não senhora. Bem gelada!
E passou para o seguinte.
Cinco minutos mais tarde estávamos todos no carro, voltando para casa.
O Lorde, para isso, não tinha muito senso de humor.
*Lord Ribblesdale -John Singer Sargent

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