Arquivo do mês: abril 2009

Derviches, um belíssimo espetáculo.

Derviches girando
Ano passado, durante a Expo 2008, em Zaragoza, tive a oportunidade de assistir um espetáculo interessantíssimo.
Soubemos, por uma amiga turca que estava trabalhando ali, que haveria uma apresentação dos Derviches, promovido pelo Ministério de Cultura da República da Turquia, em um auditório da feira internacional. Nos interessamos muito e nossa amiga nos conseguiu os convites. Não era algo que se pudesse comprar na bilheteria, as pessoas tinham que ser convidadas.
Agradecemos mutíssimo a Feyza pelo carinho e consideração, afinal chegamos de última hora e ainda saímos com um presentão destes.
Há muito tempo que eu tinha escrito, no meu Docs Google, um incipiente post sobre os Derviches, mas o texto estava precisando de ajustes, alguma boa pesquisa de fotos, uma re-leitura do folder
Depois esqueci. Com a mudança para a Cesta de Gatos perdi a memória.
Acho que agora ele sai do forno!
Havia ouvido falar sobre os Derviches alguma vez pela vida afora, mas não tinha nem a mais remota ideia de um dia poder assistir ao vivo a esse ritual religioso do Islam.
Não sei se vou conseguir explicar como foi a minha experiência, mas tive a sorte de encontrar no YouTube vários vídeos muito bons sobre eles.
Não era permitido gravar o espetáculo de Zaragoza e só pude tirar uma foto, sem flash, que nem saiu muito boa, porque eu não quis dar uma de turista chata. Também foi bom ter guardado o folder, de onde tirei todas as informações que pude para uma noção breve dos simbolismos presentes no ritual.

Tudo o que pude ver na Expo2008 de Zaragoza foi uma apresentação do Cirque du Solei, visitar alguns pavilhões mais ou menos interessantes sobre os projetos hídricos de vários países, e algumas apresentações musicais. .
Estive na feira por dois dias. As filas eram homéricas e não pude entrar em muitos pavilhões. Para ser sincera fiquei um pouco decepcionada. E talvez por isso não tenha escrito nada na época.
Então…
Decidi só escrever sobre o que mais me impressionou, pela beleza e também pelo inusitado e inesperado programa: a apresentação dos Derviches Dançantes Turcos, apesar deles não terem nada que ver com a água do planeta.
Aposto que há uma centena de posts sobre a Expo2008, se alguém quiser aprofundar o assunto. Acho que vou publicar uma das fotos, só para deixar o registro.

Em primeiro lugar me impressionou o silêncio do público, mesmo antes de começar o espetáculo. Um silêncio respeitoso e solene, incluso nos grupos de jovens que estavam presentes. Afinal aquilo não seria um “show” e sim uma expressão tradicional da cultura e religião de um povo.
Músicos
Primeiro houve uma apresentação do Conjunto de Música Tradicional de Istambul. Um grupo de músicos apoiado pelo Ministério de Cultura da Turquia para investigar e estudar a antiga música clássica turca, principalmente a Sufi. E incentivar, através de suas apresentações dentro de suas fronteiras e em palcos internacionais, a passagem para os jovens do conjunto de valores históricos e culturais de seus ancestrais.
Eles começaram a tocar e cantar… e o espírito da música começou a preencher o auditório de uma forma que parecia querer transportar-nos para a Turquia. Relaxei e me deixei levar.
Depois disso houve um pequeno intervalo antes que começasse a dança propriamente dita. Foi o tempo de ler um pouco para tentar entender os movimentos dos dançarinos.
A cerimônia da dança sagrada chama-se Sema.

Primeiro entram os cantores e músicos e se posicionam ao fundo da sala. Os músicos tocam instrumentos completamente distintos aos nossos. São flautas, intrumentos de cordas e de percussão medievais. O conjunto formado por eles, a luz, as cores, as vestimentas… o silêncio em torno de tudo já é um exercício de concentração.
Logo em seguida os dançarinos entram, com seus trajes claros e rodados cobertos por uma longa capa negra. Eles reverenciam o posto vermelho*, cruzam os braços sobre o peito com a mão esquerda apoiada sobre o ombro direito e a mão direita no ombro esquerdo, a posição de humildade.
Então, um a um, eles sentam numa pele de cordeiro branca à direita dos músicos. Tudo muito lentamente…
Posto vermelho é uma pele de cordeiro tingida de rubro que está à esquerda da sala e que será utilizada pelo Shaikh, o homem que sabe. A cor vermelha da pele simboliza a manifestação de Deus ao homem e o Shaikh representa o venerável Mevlana, um dos maiores líderes espirituais e também poeta, inspirador da Ordem Sufi Mavlevi, uma corrente espiritual mística do Islam.
Há, entre o posto vermelho e o setor dos músicos, uma linha imaginária que só o Shaikh, que conhece o caminho da realidade divina, pisa. Esta linha se chama o Equador e separa a sala do Sema em duas partes: o lado direito, descendente, é o reino material, e o lado esquerdo, ascendente, o reino espiritual.
Quando ele entra na sala dirige-se pausadamente ao posto vermelho, senta-se e todos começam a recitar o Naat, um poema que expressa amor e respeito pelo profeta Mohamed.
Depois há uma mudança da música e dos golpes de tambores, o Peshrev, na qual os dançarinos golpeiam o solo com as mão e se levantam, simbolizando que tudo existe por mandado de Alá, ao mesmo tempo que representam o morto levantando-se da tumba.
Eles dão três voltas em círculo pela sala que simbolizam a ascensão desde o reino do material ao reino do espiritual. As três voltas representam os três níveis do conhecimento que se conhecem nos ensinamentos sufies : saber, ver e chegar a ser.
Essa parte do ritual mostra que só se pode alcançar a Verdade e a Realidade confiando em um guia que conheça o caminho.
Quando os dançarinos e o Shaikh passam pelo posto vermelho se saúdam um ao outro com uma reverência de humildade que expressa a saudação de um irmão a outro irmão, de uma alma a outra alma.
Durante a saudação eles colocam a mão direita no coração sob a capa e os pés se cruzam com os dedos direitos sobre os dedos esquerdos.
Eles fazem isso nos dois lados do Equador. Finalmente, o Shaikh se põe em seu lugar, no posto vermelho, e essa parte do ritual, o Ciclo do Sultão Valed termina.

No momento seguinte os dançarinos se despojam de suas capas negras e se mostram com seus trajes claros, simbolizando o nascimento espiritual. Permanecem erguidos com os braços cruzados entre ombros enquanto o mestre de dança, o Semazenbashi, se dirige ao Shaikh e pede permissão para começar o Sema. Os dançarinos o acompanham nas saudações.
Aí já fazia um tempo que não recordo, mas que era muito grande, que estávamos assistindo, hipnotizados pela música e os lentos movimentos do grupo.
E só agora é que realmente a dança ia começar.
Quando o Shaikh dá permissão, os dançarinos passam um a um diante dele e beijam sua mão direita. Ele, por sua vez, beija a copa de seus chapéus e dá início ao Sema.

Os dançarinos estendem os braços com a palma da mão esquerda para baixo, os olhos entornados olhando fixamente o polegar esquerdo. Esta postura simboliza a justa distribuição entre os demais do que se recebe de Deus. Conforme eles giram da direita para a esquerda, os dançarinos repetem interiormente a cada volta Al-La enquanto o mestre de dança se move em torno da arena, dirigindo os dançarinos.
Esta parte do Sema, o Primeiro Selam é o nível da Justiça Divina no Sufismo, que quer dizer o nascer para a Realidade através do conhecimento, onde o ser humano se faz consciente da Grandeza do Criador e de sua própria condição de servo.
A medida que este Selam termina, o Shaikh avança para frente, recita as súplicas e anuncia sua permissão para o próximo Selam.
Quando o último dançarino começa a girar, ele troca humildes sinais de reverência com o mestre de dança e regressa à pele de cordeiro vermelha.
O Segundo Selam tem um ritmo mais lento, uma música que leva à contemplação. Os dançarinos saúdam o Shaikh mas começam a girar imediatamente depois, sem beijar sua mão. Este estágio da dança simboliza um estado de assombro reverencial ao presenciar o poder de Alá manifestado na grandeza e harmonia da criação.

O Terceiro Selam começa e termina com três ritmos distintos: o primeiro de 28 golpes de percussão, o segundo de 10 golpes e o terceiro de 6, levando a dança a uma cadência cada vez mais acelerada, incrementando a tensão da música.
Esse momento reflete o nível da Verdade e da Realidade, onde reverência e obrigação se convertem em amor e o intelecto se sacrifica em função do amor. É a submissão total, a união com Alá.
… Neste momento a gente, que assiste em silêncio, já está em uma espécie de transe…
O tempo em que eles permanecem girando, a música, as roupas, a meia luz…
Já faz tanto tempo que estamos ali…
Algumas senhoras se levantam e deixam o auditório. Creio que elas não suportaram a tensão…
O Quarto Selam tem um ritmo lento, como se tivessem sido todos arrancados do ritmo intoxicante do Selam anterior e estivessem a sós com a Realidade.
Os dançarinos começam a girar em torno de si mesmos, permanecendo em seu lugar.
O Shaikh e o mestre de dança se unem a este Sema e giram, mas eles não se despojam de suas túnicas negras. Eles agarram a túnica com a mão esquerda a altura da cintura e a parte de cima da túnica com a mão direita, abrindo-a ligeiramente enquanto giram sobre si mesmos.
Aqui se expressa a contemplação da viagem espiritual, onde, feliz com seu destino, o ser humano volta à obrigação para a qual foi criado, a saber, sua condição de servo.
Ao final deste Selam os músicos tocam peças com ritmos frenéticos, como se escutou no final do Terceiro Selam.
Depois se ouve um solo, onde afinal os corações acelerados e exuberantes por haverem alcançado a condição de servos, logram a calma gradualmente.
Quando o Shaikh volta ao posto vermelho, a música cessa e começa a recitação do Nobre Corão.
Enquanto se recita o Corão, os Derviches Dançantes param o Sema, retirando-se para o borde da pele de cordeiro branca e sentam-se. Um deles comprova se todos levam suas capas negras.
Depois de finalizar a recitação do Corão, eles todos rezam em seus interiores uma Sura de Fatiha e se levantam. Finalizam este estágio com a expressão “Hu” que todos dizem com intonação de voz profunda.
Os dançarinos fazem uma reverência ao Shaikh no posto vermelho e saem em um estado de sossego, humildade, sigilo e calma.
Duas horas e meia depois de entrarmos aí, somos uns seres distintos.
Os que não suportaram se foram. Os que ficaram sairam ainda em silêncio… com um sentimento de assombro e encantamento.
É impressionante a quantidade de rituais religiosos pelo planeta, cada um com sua história e seus simbolismos.
Eu gosto de rituais… desde que não sejam malvados.
E este, além de impressionante… é lindo!

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Zaragoza II

Da seguinte vez que estive em Zaragoza já pude dedicar-me ao rio… e por algum tempo fiquei perto dele, escutando sua música e suas histórias.
Gosto de descobrir as lendas que vivem entranhadas nas cidades.
arca de noé
O rio Ebro tem muitas.
Numa delas, estudiosos bíblicos garantem que ele foi a via que seguiu Tubal, neto de Noé, depois do grande dilúvio.
Dizem que, quando se pode pisar terra firme, Tubal foi fundando colônias ao longo do Ebro.
Zaragoza é uma dentre tantas outras.

Além disso, são inúmeras as aparições de imagens católicas flutuando sobre suas águas: Nuestra Señora de la Ola, Santa Madrona, Santa Paulina, Santa Susana ou Santa María de la Muela.

Eu gostei da história do sino. Vou contar…
Uma vez apareceu um sino sobre as águas do rio, navegando contra a corrente. Foi retirado e colocado na igreja de San Nicolás, na capital aragonesa. Dizem que desde então ele tocava sozinho para anunciar grandes tragédias.
Prometi ir vê-lo… e mais uma vez não me deu tempo. Terei que voltar.
Só não quero que ele soe enquanto eu estiver ali. Ho ho ho!
A Ponte Romana também tem suas histórias e conta com a ajuda da crença popular para mantê-las vivas.

Dizem que junto a terceira arcada, perto da margem da Basílica del Pilar, há um temido poço, sem fundo “conhecido”, chamado Pozo de San Lázaro.

Ele traga para sempre os pobres desgraçados que caem aí. É, inclusive, o lugar eleito pelos suicidas para darem fim às suas vidas.

Contam os ventos que um casal de namorados afundou nele, unidos pelos pescoços atados com o mesmo lenço de quadros, o conhecido e tradicional “cachirulo zaragozano” e que seus corpos jamais foram encontrados.


Mas ela também nos conta seus dias de lutas pela liberdade de seu povo. Grandes batalhas foram travadas em Zaragoza.
Mas eu não gosto de falar em guerras. Ponto.
É bela, a ponte. Belíssima!
Também é bela a Catedral de Zaragoza. Consagrada a Cristo, el Salvador, o templo é um caso de amor da cidade. E eu entendo esse amor perfeitamente.

La Seo foi construída sobre o mesmo local onde havia um dos mais importante templos romanos de Hispânia. Com a queda do Império Romano e a chegada dos visigodos, o templo pagão foi transformado em cristão e consagrado a San Vicente.
Mas este período durou pouco e o local foi logo substituído por uma mesquita muçulmana, após a invasão árabe à Península Ibérica.
Acho que já falei isso aqui. A desculpa era que aquele lugar simbolizava uma terra sagrada, mas na minha opinião o verdadeiro motivo era tentar “apagar” a religião e a cultura passada, destruindo os seus lugares de reunião e culto.
Uma pena para a arte.
De vez em quando, durante alguma reforma, ainda se encontram peças de uma dessas antigas construções.
Nesta tivemos sorte, pois muito dos belos traços mudejar, isto é, o estilo utilizado nas mesquitas, permanece nos muros, entradas e tetos… e graças ao bom senso de alguns construtores continuam a enfeitiçar os visitantes da Catedral del Salvador.

La Seo, como é chamada, é um conjunto arquitetônico impressionante!
Esteve fechada ao público por muitos anos, devido a uma dessas reformas onde os achados arqueológicos exigem a presença, não de simples pedreiros e sim de renomados especialistas que custam muito caro e levam uma eternidade soprando pozinhos e passando pincéis por mil anos de pedrinhas.
Um trabalho encantador, diga-se de passagem.
A história da construção deste templo é enorme e se remonta ao ano 1140. Nem pretendo contá-la aqui. Deixo a missão para outros.

Acho interessante saber a história de uma construção, mas geralmente esqueço os nomes e datas, os tipos de arcadas, etc. Esse tipo de relato é mais importante para arquitetos, estudantes de arte e por aí.
Eu sou só amante.
Procuro ler sobre ela “in loco”, durante a visita. Vou lendo e acompanhando com os olhos o que me explicam os textos. É diferente de ler aqui.
Essa história a gente vai “sentindo” e aprendendo a medida que vai visitando, muitas e muitas vezes, suas naves e capelas e, pouco a pouco reconhecendo os estilos ( românico, mudejar, gótico, renascentista e barroco ) que convivem naquele templo.
É incrível ver essas mudanças na construção, de acordo com a moda do século, o dinheiro investido, a intenção de deslumbrar dos arquitetos e dos responsáveis pela obra.
Cimborrio de La Seo ( interior )
La Seo é uma verdadeira aula de arquitetura sacra. Para qualquer lugar que se olhe a gente aprende.
Gostei principalmente das capelas de alabastro, repletas de translúcidas figuras que parecem roubar a alma do artista para dentro dos corpos esculpidos.
Mas deslumbrei também com os tetos, lindos como este.
E então, vale a pena ficar aí dentro por umas duas horas, não é?
Depois disso tudo… o melhor é parar, respirar fundo e sair agradecido por ter podido estar ali.
Ir descansar na praça ou entrar em algum bar de tapas para comer qualquer das muitas delícias de Aragón é uma excelente ideia.
Nada de sair correndo para ver outra igreja ou outro monumento. É preciso parar, deixar que ela se implante em sua memória.
Aproveite o relax para saborear o jamon de-li-ci-o-so, o vinho tinto, os caracoles, as migas, o cabrito…
O bom é que em Zaragoza, como em toda a Espanha “se come de maravilha!”
Quem sabe vale a pena trazer uma receitinha de novo… faz tanto tempo que não publico algo de comer por aqui!
Ah.. mas antes tenho que escrever sobre a Expo2008. Não, não pretendo contar como foi a exposição, depois de tanto tempo. Dela o que mais recordo são as filas intermináveis e que quase morri de calor!
Quero contar sobre um acontecimento especial que tive a oportunidade de presenciar quando estive ali.
Estou escrevendo sobre isso.
No próximo post.

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Zaragoza.


Eu tenho uma cunhada que vive nesta linda cidade.
É uma pena que a gente não aproveite mais sua proximidade com Madrid para visitá-la mais amiúde. São coisas que passam, quando a gente se deixa tragar pela rotina dos dias e dos compromissos sociais.
Quando eu vivia no monte e não conhecia ninguém por aqui, viajava mais.
Tudo tem seu preço…

Zaragoza ( a pronúncia do nome é linda, linguodental… eu gosto ) é uma das mais antigas cidades da Espanha e fica a apenas duas horas de Madrid, de carro.
Vale a pena visitá-la.
Além de bela, tem muito o que contar sobre a história da Espanha, pois foi um importante centro político e cultural da Península Ibérica durante várias civilizações.
Quando habitada pelos íberos, chamava-se Salduba. Quando entraram os romanos, foi transformada por César Augusto em uma colônia militar e chamou-se Césaraugusta. Quando chegaram os árabes, rebatizaram-na com o nome de Sarakosta e finalmente, quando voltaram os cristãos, Zaragoza. Mais bonito, heim?!
Em qualquer destas circusntâncias, ela foi importante.

Às margens do rio Ebro, a cidade mostra o perfil fidalgo de seus palácios e casario, sua catedral e igrejas, com orgulho e paixão. E eu, com meu enamoramento incurável pelos rios e pontes, poderia ficar um dia diante deste… ouvindo seus cantos e prantos, reconhecendo as músicas que todos os rios conhecem e sabem cantar.
Mas, quando a gente não está sozinho tem que acompanhar os passos e as ânsias dos moradores, que querem mostrar tudo de uma só vez. E para muitos, mostrar os monumentos é mais importante do que mostrar o rio. Não sabem que vivi quase toda a minha vida em cumplicidade com um deles… e que isso ajudou a construir minha sensibilidade.
Assim, segui meus guias na minha primeira visita, uns anos atrás, mas internamente prometi voltar lá, só para sentar perto do rio, render minha homenagem a ele… ouvi-lo. Escutar o ruídos guardados na ponte romana, seus ecos e suas lendas misturados ao barulho constante da água que corre.
Voltei em Setembro, para ver a Expo Zaragoza 2008, uma exposição mundial justamente sobre a água do planeta e fiquei encantada com as obras de recuperação das margens do Ebro. Parece que o povo redescobriu o rio.
Mas isso eu conto depois, pois quero aproveitar o post e recuperar algo do vi na primeira visita, principalmente as fotos, que são lindas.
Então…
Abandonei o rio e ao dobrar uma esquina e atravessar uma cortina de vento, dei de cara com uma enorme praça. A maior de toda a Espanha. E fiquei muda com a beleza da Plaza del Pilar.
Caminhar lentamente pela praça é uma delícia, tudo em volta é lindo.

Naquele dia só pude visitar a Basílica del Pilar e depois descansar um pouco na praça admirando suas fontes e esculturas.
A Basílica del Pilar é consagrada a uma virgem que, segundo contam, apareceu ao Apóstolo Santiago, 40 anos depois da morte de Cristo. Era uma figura pequena mas possuía uma aura extremamente brilhante e estava sobre um “pilar”. Quando desapareceu deixou o pilar para que Santiago construísse aí um templo que fosse um símbolo da fé aragonesa.
Li em algum lugar que foi a mãe de Cristo, em carne e osso, que veio de Jarusalém para incentivar o trabalho do Apóstolo que evangelizava por essas terras. E que o pilar presenteado por ela serviria de pedra fundamental para a construção do primeiro templo marianista da cristandade.
Aposto que se for lendo mais por aí aparecem mais explicações.
Não importa… não conheço nenhuma história contada duas vezes que seja a mesma. Imaginem depois de quase dois mil anos!
Hoje, a imagem da Virgem del Pilar, esculpida em madeira, repousa sobre um pilar de jaspe de 2 metros de altura.
Sua capela, de estilo neoclássico, é impressionante e a adoração de seus fiéis também. A cada hora se reza uma missa. E está sempre lotada.
Por trás do altar está seu camarim, suas jóias e seus mantos. Pinturas de Goya adornam o teto e peças de ouro e prata seu altar.
E sabem qual é o nome de mulher mais comum nesta cidade?
Tá. Eu sabia que era fácil.
Basílica del Pilar-Cúpulas de cerâmica
O primeiro templo foi construído para substituir um templo visigótico e foi destruído por um incêndio no ano de 1434, do qual salvou-se – por milagre – a imagem da Virgem. Durante o século XVI foi restaurado e novamente derrubado no século XVII, para dar lugar a atual construção.
A Basílica é absolutamente grandiosa.
Por fora se vê as dez cúpulas de azulejos coloridos, a cúpula central e as quatro torres.
Por dentro as enormes colunas, os tetos abobadados, o coro e seus tronos trabalhados, o antigo órgão…
Basílica del Pilar- Interior

E a gente perde o fôlego diante do Altar Maior.
Esculpido em alabastro por Damián Forment a princípios do século XVI é uma das poucos obras que se conservam da antiga igreja gótica.
Fiquei muda outra vez. O alabastro dá uma sensação de transparência… e parece que a gente pode, ao tocar na pedra, atravessá-la… sentir a vida por dentro da obra.
A cor é extraordinária, porque absorve a luz e depois espalha-a por todo o recinto.
Bárbaro!

Não posso dizer nada, nem é necessário…
A música ambiente era um canto gregoriano suave e persuasivo, aturdindo a gente como um mantra.
É incrível o que se pode sentir num templo como este.

Dá vontade de rezar, chorar, meditar.
Dá vontade até de ir para o céu… se ele for assim tão artístico.
Acho que esta é uma das intenções dos templos. E conseguem, viu!
A gente sai com vontade de ficar.

 

Lá fora o rio cantava e a praça encantava com seus pombos, suas crianças coloridas, seus velhos de guarda chuva, sua atmosfera de vida terrena… tão artística quanto…
Mas parece que a gente leva a música dentro do coração e ela continua soando, soando…trazendo com ela um silêncio que abafa os ruídos da rua.

 

Fiquei por ali, sentindo o vento e aproveitando a paz que havia se instalado por debaixo da pele.
Parece que quando a gente se sente assim, o mundo inteiro fica mais bonito.

* As fotos são retiradas da Internet, mas podem ser vistas em tamanho maior dando um click sobre elas.

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O Escafandro e a Borboleta

O escafandro e a borboleta- o livro
Quando ganhei esse livro, em 2001, vivia no Brasil, estava me recuperando de uma depressão e minha mãe estava desaparecida em si mesma, numa enfermidade carnívora. Uma doença que vai tirando da pessoa tudo que é dela, até suas lembranças mais viscerais. Depois ela transforma a pessoa em uma casca vazia, só mata depois que destroi tudo.
Quando soube que o livro contava a história de um jornalista francês que havia sofrido um acidente cerebral e que havia escrito o relato piscando um olho para as letras do alfabeto que uma enfermeira lhe mostrava, não tive coragem nem de abri-lo.
Guardei o presente para ler em outra época. Eu estava tão fragmentada ainda. Tinha um medo horrível de entrar no túnel escuro da tristeza sem nome… precisava cuidar mais das minhas emoções e tinha consciência da fragilidade da minha saúde afetiva.
Aliás, essa foi uma aprendizagem da época. Aprendi a cuidar mais de mim. Aprendi a perceber quando estou mais sensível, mais vulnerável… e evitar expor-me a sensações muito fortes.
Mas… um dia desses, arrumando as novas estantes da casa, encontrei o livro. Li a dedicatória carinhosa da amiga brasileira e criei coragem, abri a primeira página e comecei a ler.
E não parei mais até que o terminei. Li de um só fôlego.
Foi fantástico ver o mundo através de sua experiência. Uma hora com humor, outra emudecida pela impotência, outra ainda entre lágrimas de saudades das coisas mais simples, como estender a mão e fazer uma carícia…

Vou contar um pouco a história.
Jean Dominique Bauby, um jornalista francês, bem sucedido, jovem pai de dois filhos e cheio de energia, sofreu um acidente vascular cerebral com pouco mais de quarenta anos, entrou em coma e quando saiu deste estado percebeu que sua mente estava quase intacta… mas o único que havia perdido era a conexão com seu próprio corpo.
Estava completamente paralisado, numa síndrome chamada “locked-in”, que significa “trancado em si mesmo”.
Não podia mexer-se, comer, falar, nem sequer respirar sem ajuda de uma máquina. Apenas um olho se mexia. Ele piscava. Uma vez para dizer sim e duas para dizer não.

Com esse único movimento físico ele decidiu se comunicar com o mundo, seus filhos e seus amigos e contar que estava vivo, que pensava sair daquela prisão e queria que soubessem o que ele sentia lá dentro de sua cabeça e de seu coração.
Para isso ia piscando e indicando as letras que iriam formar as palavras e frases de um livro espetacular de 140 páginas.
Emocionada, fiquei me lembrando dos monólogos que tive com a Princesa, durante seu último ano de vida, desejando que dentro dela estivesse escondida a mulher que ela era. Recordei as histórias que eu lhe contava, as músicas que cantava, as sinfonias e concertos que fazia tocar no som de seu quarto, baixinho, para que pudesse escutá-las mais uma vez.
Às vezes eu tinha a impressão que algo em sua expressão mudava…
Era só uma impressão?
Talvez.
Aprendi muito sobre a vida com a morte da minha mãe. Eu já disse muitas vezes e vou repetir, minha mãe me pariu outra vez quando morreu.
Não quero que isso seja visto apenas como um drama particular, embora sua morte tenha sido dramática para mim. Estou falando de como reaprendi a viver.
Estou falando de aprender a dar o valor real à vida e tomar consciência de sua fugacidade.
Aprender a valorizar a memória, a imaginação, a capacidade para mover-se, ler um livro, escutar uma música, abraçar um filho, um amigo.
Aprender a valorar mais as relações e menos as coisas. Agora. Enquanto é possível.
Estou falando em ter consciência disso on line, durante a ação.
Saber que este é um privilégio que algumas pessoas perderam num segundo… e que a gente não tem sequer a noção do que significa essa perda.
Cena do filme "O escafandro e a Borboleta"
Bauby também ensina os verdadeiros valores da vida desde sua prisão – seu corpo – um escafandro, como ele o chama… e de sua alma, a borboleta com a qual ele voa, visita seus filhos, viaja pela Paris que adora, toca e beija seus queridos…
É impossível ser o mesmo depois de ler seu livro. Não é ficção, é real. Aconteceu de verdade…
Só não reflete e aprende quem for impermeável.
Descobri, cafufando a Internet, que rodaram um filme em 2007 que foi indicado a 4 Oscars. Como assim? E eu não vi!
Pois sim. Em 2007 eu estava vivendo lá no meu monte, longe de… quase tudo.
Aposto que ele não passou no pequeno cinema da praça de Los Santos Niños, em Alcalá de Henares.
Li algumas críticas excelentes. Vou tentar encontrá-lo em uma locadora por aqui por perto. O diretor é o mesmo de Antes do Anoitecer, um de meus filmes queridos, e trata o tema com delicadeza, fugindo do dramalhão piegas hollywoodiano em que se transformam excelentes livros.
E sou fã do cinema francês.
Mas um para minha extensa lista de perdidos…

 

(Le Escaphandre et le Papillon – França / EUA, 2007 / Brasil 2008 – 112 min)

Direção: Julian Schnabel.
Roteiro: Ronald Harwood adaptando livro de Jean-
Dominique Bauby
.
Elenco: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Max von Sydow, Marina Hands, Isaach De Bankolé.
Gênero: Drama, Biografia.

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Semana Santa em España

A primeira vez que vi uma procissão de Semana Santa na Espanha fiquei muito impressionada. Na época, escrevi para o blog Cicatrizes da Mirada. Estávamos em 2003 e meu blog tinha mais ou menos um mês.
Não havíamos podido viajar até a Andaluzia ( região famosa pelos espetáculos sacros durante essa época ) e assistimos as procissões de Alcalá de Henares, a cidade mais próxima ao “pueblo” onde eu morava. Fiquei absolutamente encantada!
A cidade estava toda apagada, as luzes das velas jogando tons amarelados sobre os muros antigos da muralha, as sombras dos penitentes, encapuzados e vestidos com longos hábitos e capas com as cores de sua confraria, projetando-se pelas ruas. O silêncio apenas interrompido pelos sons dos tambores.
Tum-tum…tum-tum!
Sob os hábitos e os capuzes que os igualavam em forma e altura, os penitentes tinham visíveis apenas os olhos e os pés, muitos deles descalços, com grossas correntes prendidas nos tornozelos que arranhavam o asfalto num ruído mórbido… srenckmm…srenckmmm… lentamente e repetidamente….o mesmo ruído… Apesar de nossa presença, eles iam caminhando compenetrados, cumprindo suas penitências.
No começo foi dando em mim um estado de letargia…
A respiração parecia seguir o mesmo passo lento de todos… e depois era como se voltássemos no tempo… não estávamos mais aqui, no início do século XXI e sim em algum lugar de um passado sem data, sem tempo, sem hora.
Por um tempo indefinido a procissão passou… lenta, pacientemente…e meu coração quase parou.

Eu não sou religiosa, mas respeito as crenças alheias. Gosto dos rituais litúrgicos e adoro a música sacra. Ficar em silêncio numa hora dessas é um sinal de cuidado e consideração, mesmo se as pessoas que estejam ali assistindo não tenham qualquer devoção católica.
Mas este silêncio todo, descobri depois, era fruto de um comportamento regional. Em Castilla as procissões são mais formais, mais solenes, mais medievais.
Em Andaluzia todo mundo fala, ri, joga flores e elogios às suas imagens. Se por um lado essa abertura toda é bonita… por outro dá lugar a que muita gente que está ali nem se preocupe com a procissão, converse em voz alta, grite ao telefone bem no pé do seu ouvido, fume na sua cara e beba em latas que joga pelo chão durante o desfile e, para mim, isso desvirtua o ato religioso, desrespeita o fiel e desprestigia o espetáculo.
Na minha opinião a Semana Santa da Espanha é um evento mais do que religioso. É um evento estético. É uma expressão da arte sacra. E já compreendi que esta arte faz parte da pele e do sangue deste povo.
Por uma semana completa, a Espanha inteira é um grande palco por onde desfilam as tradições católicas. Cada pequeno pueblo tem seu Cristo, sua Virgem especial.
As procissões serpenteiam pelas ruas das grandes e pequenas cidades, dia e noite, como um rosário de contas coloridas, cada uma com suas características próprias. Cada uma é única.
Essas fotos acima foram feitas em Tarifa, ao sul da Andaluzia. Ali também as pessoas não se cortam em conversar durante o cortejo ou andar por entre os penitentes, como se eles não estivessem ali.
Isso me incomodou muitíssimo.
De qualquer forma, em Tarifa, as confrarias também não se importam. Jamais vi algum penitente ou organizador impedir o passeio desrespeitoso por entre suas alas. Todas as noites da semana saem de suas igrejas e desfilam pelos becos estreitos, enfrentando o vento, o frio e o descaso da grande maioria de seus assistentes, insistindo em manter o clima de compenetração, que é quase impossível.
Desta vez eu tive pena deles . Tanto esforço, tanto sacrifício para que as pessoas passeassem por entre os círios, tropeçando em seus nazarenos, indiferentes ao seu significado.
Tarifa se enche de turistas de praia, a maioria jovens e estrangeiros. Eu entendo que não se interessem, mas bem que podiam passar por outra rua… que custa?
Meu cunhado e minhas sobrinhas participaram de duas procissões. Fiquei com um pena deles!
Mas…de qualquer forma, assistir o espetáculo sempre vale a pena. É preciso ter paciência, buscar um bom cantinho, num rua com menos movimento e exercitar a benevolência e a compaixão.
Bueno… é preciso também saber onde ir. Se quiser mais recolhimento é melhor não ir à Andaluzia.

Málaga, Cádiz, Salamanca, Ávila, Segóvia,Toledo…. todas as cidades tem seus rituais.
Zamora desfila em absoluto silêncio e quando canta é um mísere gregoriano. Lindíssimo!
Sevilla grita, chora e aplaude. Emocionante também!
Cada um com seu estilo e sua tradição.
Em qualquer lugar do país há um espetáculo imperdível, pode apostar. Por minha vontade eu iria cada ano a uma região.
Os Pasos são obras, em sua maioria, de madeira e metal. Sobre eles vai uma imagem de Virgem ou de Cristo que representam uma das muitas confrarias de uma igreja da cidade.
As Virgens são lindas, todas cobertas com rendas renascentistas e espetaculares mantos bordados, com suas lágrimas de cristal transparente, rodeadas de luzes ou velas. A gente arrepia só em vê-las passar, sofrendo todos os dias a morte de seu filho.
A mais famosa delas é a Macarena, de Sevilla.
Há lindos cantos e poesias em sua homenagem e quando ela desfila a cidade inteira está nas ruas por toda a noite. Gritam seu nome entre lágrimas: “Guapa! Guapa!” (Bela, bela!)
Os Cristos morrem em suas cruzes, pedindo ao povo que recordem sua dor.

Por baixo disso tudo, homens e mulheres vestidos com roupas reforçadas por turbantes e peças alcochoadas, levam sobre os ombros o peso de mais de mil quilos.
São os costaleiros, tradicionais em toda a Espanha. Poucas são as procissões que utilizam rodas em seus Pasos.
É belíssimo ver como se movem mais de duzentos pares de pés, dentro de suas sapatilhas de esparto, ao mesmo passo, ao mesmo ritmo, balançando-se levemente para fazer mecer o Paso e sua imagem querida.
Sobem e descem encostas, metem-se em ruas tão estreitas que pensamos que será impossível vencer o desafio, dobram-se sobre os joelhos quando precisam desviar de alguma construção mais baixa ou passar por uma porta impossível e seguem bailando, como se não sentissem o peso que carregam por muitas horas… às vezes por toda uma noite.
O Cristo ou a Virgem balançam no alto, como se viessem levitando sobre as cabeças dos fiéis. Uma mudança de ritmo da música é acompanhado por uma mudança de ritmo nos passos dos que os carregam…
Uma coisa linda! De arrepiar todos os pelinhos do corpo…
Algumas dessas imagens são obras de arte que tem um valor incalculável, além de muitas histórias, mas isso não importa muito. O simbolismo que representam é o mais valioso…
De repente, o Paso para. E de uma sacada uma mulher começa a cantar, à capela… sem música alguma que a acompanhe. É uma Saeta. Uma prece triste e ardorosa, bem ao estilo espanhol, como uma canção flamenca.
E nesse momento, os pelinhos do corpo parecem saltar para fora…
Parece, por instantes, que as gentes que desfilam e as que assistem vão, finalmente, obedecer o mais importante ensinamento de Jesus Cristo: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.
E eu, mesmo não sendo religiosa, agnóstica por falta de convicção, me emociono até as lágrimas…
E rezo… para que toda aquela gente que baila e canta ao seu senhor e senhora seja benevolente consigo mesma, com o próximo e também com o distante… que a compaixão seja uma prática, mais que uma canção…

*Diana Navarro é uma conhecida cantora espanhola. Amei encontrar este vídeo no iutube.
É uma maravilha poder contar com esta ajudazinha.
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