Cartas aos Curumins. (3) Dia das Crianças.

Hoje é 12 Outubro de 2016, Cartagena, Espanha.
Queridos Curumins…
Hoje é Dia das Crianças no Brasil. E eu sem vontade de comemorar. Mas estou lutando contra o desencanto para poder contar a  vocês  como era esse dia na minha época.  Algo muito grave está acontecendo nesses últimos dois anos em meu país. Prefiro não conversar sobre isso agora, mas sei que as crianças brasileiras de hoje vão ter um futuro muito difícil pela frente.
Pois é… apesar da tristeza que me toma o peito, vou tentar.
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Quando eu era pequena, esperava este dia com muita ilusão. Dia de ganhar presentinhos e caramelos. Dia de brincar no parque ou na praia. Durante muito tempo minha mãe manteve esses mimos e mesmo quando já éramos adolescentes, ela sempre dava um jeitinho de fazer os saquinhos de bombons, comprar um livro, uma canetinha chinesa, uns papéis de carta coloridos…
Não sabíamos que enquanto nós vivíamos a ilusão da felicidade, nosso país sofria nas mãos de uma ditadura militar brutíssima, onde professores, estudantes, pais e mães eram torturados e assassinados em nome da ” Segurança Nacional”.  Recordo que aos 10 ou 12 anos, já sabia que corpos manietados e destroçados eram encontrados em matagais, enquanto que outros desapareciam para sempre. Tempos horríveis onde a censura atuava para que nada disso saísse na TV  nem nos grandes jornais. Quando saía algo, todos eram “terroristas muito perigosos” que haviam sido mortos por seus companheiros ou por resistirem à ordens de prisão. Isso aconteceu no Brasil de 1964 até 1993. Apesar de dizerem que a ditadura acabou antes, não é verdade. As mortes seguiram acontecendo até muito tempo depois da anistia e das primeiras eleições.
Agora, no Brasil, essa fase está prestes a recomeçar. Eles estão provocando com muita vontade. Sabem que as greves e as revoltas virão. Sabem que as pessoas com raiva nas ruas são capazes de tudo. Então eles vão poder justificar a violência do Estado. Essa é sua vocação. Eles amam o poder de humilhar e reprimir. Não posso nem falar que me arrepio.
Pois então, meus queridos, está complicado para mim conversar sobre outro tema, sem que este se interponha entre nós. Sou assim mesmo, sua mãe sabe. Ela tenta me proteger dessa dor, mas acho que ela me entende.
É preciso dar-me um tempo. Os acontecimentos políticos tem me causado erupções na pele, estresse e ansiedade. Vejam só que palavras mais difíceis. Aposto que sua mãe vai ter que explicar um pouco o que significam…. hahahaha!
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Vou voltar a falar sobre o Dia das Crianças. Não sei se ele existe em outros países, mas no meu Brasil era uma uma bonita festa. Ganhávamos balões coloridos e bombons, além de um presente. Em minha casa eram coisas simples e baratas. Meu irmão mais jovem ganhava um badoque ou uma pipa, o mais velho um peão ou bolinhas de gude, e eu um bambolê, um livro, canetas de todas as cores, lindas! Festa grande! Pular corda, jogar bola de gude, o jogo de pedrinhas no chão para recuperá-las de varias formas diferentes, amarelinha, queimado, jogo do anel, mímica, palavras cruzadas, batalha naval, gamão… Era tudo tão diferente dos jogos de hoje! Estávamos quase o tempo todo no jardim, na rua, no terraço. Brincávamos com toda a vizinhança.
Presentes mais caros só no dia do aniversário e olhe lá.  Uma bicicleta, uns patins, esses tinham que durar anos. Nada era descartável. Tudo tinha conserto. As roupas passavam dos mais velhos para os mais jovens e as mães do bairro onde eu morava contratavam costureiras para fazerem as roupas de seus filhos. Comprar roupa pronta era coisa para dia de Natal ou festa de casamento.
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Um dos presente que mais gostei do Dia das Crianças veio de minha mãe. Era um grande e grosso caderno de capa dura que ela disse que seria mágico, porque nele eu poderia guardar tudo o que eu gostasse. Poesias, desenhos, frases, figuras recortadas das revistas, etc. Poderia escrever minhas próprias poesias e pensamentos. E também poderia fazer uma lista dos livros que eu lia, igual a que ela fazia. Adorei a ideia. Durante muitos anos esse foi meu mais íntimo aliado. Estava sempre com ele pela casa.  Pouco a pouco o caderno foi engordando e ficando cada vez mais difícil de fechar, troncho, mas eu o amava.
Ele morreu quando uma grande inundação do rio invadiu a nossa casa. Que sofrimento! Foi como viver a morte de um amigo. Não podia acreditar que ele havia derretido na lama podre que invadiu a nossa casa. Não me perdoava por não tê-lo salvado.
Passei anos sem querer fazer outro, até que comecei a amar o cinema e me inspirei nele para fazer um menorzinho e mais magrinho com a lista de filmes que eu via… e eram muitos. As poesias voltaram, os textos e as frases roubadas dos livros que eu lia… mas nada se comparou nunca ao primeiro. Sempre me lembrarei dele, de seu formato distorcido pela grande quantidade de tesouros que guardava.
Também perdi o magrinho e muitos dos meus tesouros se foram nas constantes enchentes que afogaram o Poço da Panela naquela época. Mas a alma do presente sempre permaneceu viva dentro do meu coração. E, vejam só, depois de tantos anos, ganhei de presente de um linda e querida prima, Paula Fontenelle, um blog. Para escrever, guardar, compartilhar meus pensamentos e minhas estórias, como antes. Guardar as poesias, os filmes, os livros.
Maravilhoso blog. Chamava-se Impressões. Pensei que nunca mais meus tesouros desapareceriam. Ledo engano. Eles também sumiram, desapareceram por alguma arte do improvável. Construí outro que chamei de Cicatrizes da Mirada. Também se foi. Aprendi, finalmente, que não há “para sempre” nesse universo. Nunca mais fiz listas. Nunca mais esperei que meus tesouros fossem eternos.
Queridos, Curumins… é preciso saber disso muito cedo. Para entender que o tempo não para. Que as coisas ruins passarão, assim como as boas… que a gente não vai poder guardar as boas coisas  que nos acontecem, exceto no fundo do coração. E não vale a pena guardar as ruins porque assim a gente vai ficar sem lugar no coração para o que realmente vale a pena na vida.
Nisso estou treinando o meu agora… a gente nunca deixa de aprender e precisar limpar o coração…
Meu país vai sair desse triste momento e eu espero que seja logo porque quanto mais durar mais gente vai sofrer. E eu já estou tirando a tristeza de dentro do peito e voltando a apreciar as coisas boas que a vida me dá. Uma delas é essa bela ideia de escrever para vocês me lerem num futuro que eu desconheço.
Beijinhos, queridos.
Categorias: Cartas aos Curumins | 4 Comentários

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4 opiniões sobre “Cartas aos Curumins. (3) Dia das Crianças.

  1. Ah, ela nunca me disse que vc tinha um caderno para anotar os livros! Eu ainda tenho o meu, o mesmo que ela me deu. E o da poesia era outro, que também foi presente dela, e nele pegávamos as flores secas do jardim, que secávamos entre as folhas das páginas amarelas das listas telefónicas. Que engraçadas, as listas telefónicas, elas já estao em algum museu?
    Esse é um dos recordos mais doces que eu tenho de vovó. Decorar as poesias de Cecilia Meireles no terraço.
    Quanto a política, é lindo ser culto e ter uma opiniao formada e se indignar com as injustiças, mas olha, nao tira o meu sono. O Brasil sempre viveu instavel. Quando pensávamos que ia melhorar, o retrocesso. E é globalizado, olha o Trump no Estados Unidos, olha os independentistas na Espanha, maduro na venezuela, na Inglaterra, olha o Brexit, o white party na Austria (que igual a Hitler e vao pela 3º eleiçao), olha Putim na Russia matando os homosexuais… sempre teve tudo isso, eu escolho me preocupar com outras coisas. Nem uma noite do meu sono vou dedicar a algo que eu nao posso mudar. Agora, o seu pequeno grao de areia para um mundo melhor é possivel. Tem um monte de ONG precisando de voluntario, de tempo, de ajuda, tem gente passando fome, sede, tem velhinhos que nao tem ninguém pra conversar, e tem o mar, a montanha, céu azul, super luas, tem estradas, e caminhos pequenos e flores que brotam em pedras e peixes coloridos, tem cachorrinhos amorosos, e cavalos bonitos, tem música gostosa, café da manha saboroso, fruta doce, tem a fotografia… tem tantas letras bonitas por ler, idiomas que aprender, as cores para pintar e exercício para vencer os seus propios limites. E olha só que privilegio, além de nao ter que andar kms por um balde de agua, é extraordinario viver em um país onde a expectativa de vida sao de 100 anos e nao tem ninguém pra te perseguir políticamente.

    • Meu amor, eu sou capaz de ver tudo isso… E aproveitar cada delícia.
      Mas eu acho que não posso virar a cara para o outro lado quando vejo as injustiças… Minha opinião sempre fará diferença. Qualquer um que se una a nós faz falta.
      Beijos.

      • Sua opiniao nao faz a diferença… infelizmente. É um gasto de energia inútil. Um peixe porque quer subir uma arvore pode? você por nao dormir nao salva ninguém, nem um gatinho sem teto. Agora vc pode continuar se aperriando, perdendo os cabelos, se enchendo de mancha, odiando a ignorancia alheia, idignando-se com a maldade, perdendo horas a fio lendo barbaridades, se envenenando… e é triste dizer: nao vai adiantar de nada. Para nada.

  2. nisso vc tem razão… Já estou me afastando emocionalmente 😮

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