Derviches, um belíssimo espetáculo.

Derviches girando
Ano passado, durante a Expo 2008, em Zaragoza, tive a oportunidade de assistir um espetáculo interessantíssimo.
Soubemos, por uma amiga turca que estava trabalhando ali, que haveria uma apresentação dos Derviches, promovido pelo Ministério de Cultura da República da Turquia, em um auditório da feira internacional. Nos interessamos muito e nossa amiga nos conseguiu os convites. Não era algo que se pudesse comprar na bilheteria, as pessoas tinham que ser convidadas.
Agradecemos mutíssimo a Feyza pelo carinho e consideração, afinal chegamos de última hora e ainda saímos com um presentão destes.
Há muito tempo que eu tinha escrito, no meu Docs Google, um incipiente post sobre os Derviches, mas o texto estava precisando de ajustes, alguma boa pesquisa de fotos, uma re-leitura do folder
Depois esqueci. Com a mudança para a Cesta de Gatos perdi a memória.
Acho que agora ele sai do forno!
Havia ouvido falar sobre os Derviches alguma vez pela vida afora, mas não tinha nem a mais remota ideia de um dia poder assistir ao vivo a esse ritual religioso do Islam.
Não sei se vou conseguir explicar como foi a minha experiência, mas tive a sorte de encontrar no YouTube vários vídeos muito bons sobre eles.
Não era permitido gravar o espetáculo de Zaragoza e só pude tirar uma foto, sem flash, que nem saiu muito boa, porque eu não quis dar uma de turista chata. Também foi bom ter guardado o folder, de onde tirei todas as informações que pude para uma noção breve dos simbolismos presentes no ritual.

Tudo o que pude ver na Expo2008 de Zaragoza foi uma apresentação do Cirque du Solei, visitar alguns pavilhões mais ou menos interessantes sobre os projetos hídricos de vários países, e algumas apresentações musicais. .
Estive na feira por dois dias. As filas eram homéricas e não pude entrar em muitos pavilhões. Para ser sincera fiquei um pouco decepcionada. E talvez por isso não tenha escrito nada na época.
Então…
Decidi só escrever sobre o que mais me impressionou, pela beleza e também pelo inusitado e inesperado programa: a apresentação dos Derviches Dançantes Turcos, apesar deles não terem nada que ver com a água do planeta.
Aposto que há uma centena de posts sobre a Expo2008, se alguém quiser aprofundar o assunto. Acho que vou publicar uma das fotos, só para deixar o registro.

Em primeiro lugar me impressionou o silêncio do público, mesmo antes de começar o espetáculo. Um silêncio respeitoso e solene, incluso nos grupos de jovens que estavam presentes. Afinal aquilo não seria um “show” e sim uma expressão tradicional da cultura e religião de um povo.
Músicos
Primeiro houve uma apresentação do Conjunto de Música Tradicional de Istambul. Um grupo de músicos apoiado pelo Ministério de Cultura da Turquia para investigar e estudar a antiga música clássica turca, principalmente a Sufi. E incentivar, através de suas apresentações dentro de suas fronteiras e em palcos internacionais, a passagem para os jovens do conjunto de valores históricos e culturais de seus ancestrais.
Eles começaram a tocar e cantar… e o espírito da música começou a preencher o auditório de uma forma que parecia querer transportar-nos para a Turquia. Relaxei e me deixei levar.
Depois disso houve um pequeno intervalo antes que começasse a dança propriamente dita. Foi o tempo de ler um pouco para tentar entender os movimentos dos dançarinos.
A cerimônia da dança sagrada chama-se Sema.

Primeiro entram os cantores e músicos e se posicionam ao fundo da sala. Os músicos tocam instrumentos completamente distintos aos nossos. São flautas, intrumentos de cordas e de percussão medievais. O conjunto formado por eles, a luz, as cores, as vestimentas… o silêncio em torno de tudo já é um exercício de concentração.
Logo em seguida os dançarinos entram, com seus trajes claros e rodados cobertos por uma longa capa negra. Eles reverenciam o posto vermelho*, cruzam os braços sobre o peito com a mão esquerda apoiada sobre o ombro direito e a mão direita no ombro esquerdo, a posição de humildade.
Então, um a um, eles sentam numa pele de cordeiro branca à direita dos músicos. Tudo muito lentamente…
Posto vermelho é uma pele de cordeiro tingida de rubro que está à esquerda da sala e que será utilizada pelo Shaikh, o homem que sabe. A cor vermelha da pele simboliza a manifestação de Deus ao homem e o Shaikh representa o venerável Mevlana, um dos maiores líderes espirituais e também poeta, inspirador da Ordem Sufi Mavlevi, uma corrente espiritual mística do Islam.
Há, entre o posto vermelho e o setor dos músicos, uma linha imaginária que só o Shaikh, que conhece o caminho da realidade divina, pisa. Esta linha se chama o Equador e separa a sala do Sema em duas partes: o lado direito, descendente, é o reino material, e o lado esquerdo, ascendente, o reino espiritual.
Quando ele entra na sala dirige-se pausadamente ao posto vermelho, senta-se e todos começam a recitar o Naat, um poema que expressa amor e respeito pelo profeta Mohamed.
Depois há uma mudança da música e dos golpes de tambores, o Peshrev, na qual os dançarinos golpeiam o solo com as mão e se levantam, simbolizando que tudo existe por mandado de Alá, ao mesmo tempo que representam o morto levantando-se da tumba.
Eles dão três voltas em círculo pela sala que simbolizam a ascensão desde o reino do material ao reino do espiritual. As três voltas representam os três níveis do conhecimento que se conhecem nos ensinamentos sufies : saber, ver e chegar a ser.
Essa parte do ritual mostra que só se pode alcançar a Verdade e a Realidade confiando em um guia que conheça o caminho.
Quando os dançarinos e o Shaikh passam pelo posto vermelho se saúdam um ao outro com uma reverência de humildade que expressa a saudação de um irmão a outro irmão, de uma alma a outra alma.
Durante a saudação eles colocam a mão direita no coração sob a capa e os pés se cruzam com os dedos direitos sobre os dedos esquerdos.
Eles fazem isso nos dois lados do Equador. Finalmente, o Shaikh se põe em seu lugar, no posto vermelho, e essa parte do ritual, o Ciclo do Sultão Valed termina.

No momento seguinte os dançarinos se despojam de suas capas negras e se mostram com seus trajes claros, simbolizando o nascimento espiritual. Permanecem erguidos com os braços cruzados entre ombros enquanto o mestre de dança, o Semazenbashi, se dirige ao Shaikh e pede permissão para começar o Sema. Os dançarinos o acompanham nas saudações.
Aí já fazia um tempo que não recordo, mas que era muito grande, que estávamos assistindo, hipnotizados pela música e os lentos movimentos do grupo.
E só agora é que realmente a dança ia começar.
Quando o Shaikh dá permissão, os dançarinos passam um a um diante dele e beijam sua mão direita. Ele, por sua vez, beija a copa de seus chapéus e dá início ao Sema.

Os dançarinos estendem os braços com a palma da mão esquerda para baixo, os olhos entornados olhando fixamente o polegar esquerdo. Esta postura simboliza a justa distribuição entre os demais do que se recebe de Deus. Conforme eles giram da direita para a esquerda, os dançarinos repetem interiormente a cada volta Al-La enquanto o mestre de dança se move em torno da arena, dirigindo os dançarinos.
Esta parte do Sema, o Primeiro Selam é o nível da Justiça Divina no Sufismo, que quer dizer o nascer para a Realidade através do conhecimento, onde o ser humano se faz consciente da Grandeza do Criador e de sua própria condição de servo.
A medida que este Selam termina, o Shaikh avança para frente, recita as súplicas e anuncia sua permissão para o próximo Selam.
Quando o último dançarino começa a girar, ele troca humildes sinais de reverência com o mestre de dança e regressa à pele de cordeiro vermelha.
O Segundo Selam tem um ritmo mais lento, uma música que leva à contemplação. Os dançarinos saúdam o Shaikh mas começam a girar imediatamente depois, sem beijar sua mão. Este estágio da dança simboliza um estado de assombro reverencial ao presenciar o poder de Alá manifestado na grandeza e harmonia da criação.

O Terceiro Selam começa e termina com três ritmos distintos: o primeiro de 28 golpes de percussão, o segundo de 10 golpes e o terceiro de 6, levando a dança a uma cadência cada vez mais acelerada, incrementando a tensão da música.
Esse momento reflete o nível da Verdade e da Realidade, onde reverência e obrigação se convertem em amor e o intelecto se sacrifica em função do amor. É a submissão total, a união com Alá.
… Neste momento a gente, que assiste em silêncio, já está em uma espécie de transe…
O tempo em que eles permanecem girando, a música, as roupas, a meia luz…
Já faz tanto tempo que estamos ali…
Algumas senhoras se levantam e deixam o auditório. Creio que elas não suportaram a tensão…
O Quarto Selam tem um ritmo lento, como se tivessem sido todos arrancados do ritmo intoxicante do Selam anterior e estivessem a sós com a Realidade.
Os dançarinos começam a girar em torno de si mesmos, permanecendo em seu lugar.
O Shaikh e o mestre de dança se unem a este Sema e giram, mas eles não se despojam de suas túnicas negras. Eles agarram a túnica com a mão esquerda a altura da cintura e a parte de cima da túnica com a mão direita, abrindo-a ligeiramente enquanto giram sobre si mesmos.
Aqui se expressa a contemplação da viagem espiritual, onde, feliz com seu destino, o ser humano volta à obrigação para a qual foi criado, a saber, sua condição de servo.
Ao final deste Selam os músicos tocam peças com ritmos frenéticos, como se escutou no final do Terceiro Selam.
Depois se ouve um solo, onde afinal os corações acelerados e exuberantes por haverem alcançado a condição de servos, logram a calma gradualmente.
Quando o Shaikh volta ao posto vermelho, a música cessa e começa a recitação do Nobre Corão.
Enquanto se recita o Corão, os Derviches Dançantes param o Sema, retirando-se para o borde da pele de cordeiro branca e sentam-se. Um deles comprova se todos levam suas capas negras.
Depois de finalizar a recitação do Corão, eles todos rezam em seus interiores uma Sura de Fatiha e se levantam. Finalizam este estágio com a expressão “Hu” que todos dizem com intonação de voz profunda.
Os dançarinos fazem uma reverência ao Shaikh no posto vermelho e saem em um estado de sossego, humildade, sigilo e calma.
Duas horas e meia depois de entrarmos aí, somos uns seres distintos.
Os que não suportaram se foram. Os que ficaram sairam ainda em silêncio… com um sentimento de assombro e encantamento.
É impressionante a quantidade de rituais religiosos pelo planeta, cada um com sua história e seus simbolismos.
Eu gosto de rituais… desde que não sejam malvados.
E este, além de impressionante… é lindo!

Categorias: Cicatrizes da Mirada, Vídeos | Tags: , , | 3 Comentários

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3 opiniões sobre “Derviches, um belíssimo espetáculo.

  1. Ola , achei seu blog no blog dmadrid, tambem vivo em madrid.
    Poxa que luxo voce ter assistido esse espetaculo heim… adoro essas historias da vida.. seu post me fez lembrar de uma vez eu e meu marido fomos visitar uma igrejinha antiga no Rio de Janeiro e derrepente começaram a entrar varios monjes, que nao sei de onde saiam… e comaçaram a rezar uma missa toda em canto gregoriano… maravilhoso, extasiante…. só para nós…
    bjs

  2. Nora, olha só as as relações entre as coisas. Fui àquela exposição de arte islâmica na Caixa Forum em Madrid e vi uma poesia muito bonita e anotei o nome do poeta: Yalal al-Din Rumi. Ontem fui comprar o livro e fico sabendo que ele foi o fundador dos Mevlevis ou “derviches dançantes”. Eu só comecei a ler o livro, mas já vi que é uma pequena joia!

  3. Rodrigo N. Derviche

    Gostei muito da sua descrição do ritual. Senti-me sentado lá, assistindo a este ritual. Parabéns pela narração. Rodrigo N. Derviche – Curitiba PR.

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