Arquivo do dia: novembro 8, 2004

Voz no Vento…

Abriu a janela lentamente, com um esforço brutal, temendo debruçar-se e não resistir ao chamado do vento. Acendeu um cigarro… para ganhar tempo.
Debruçou-se, apesar do medo.
Quanto tempo dura um cigarro? Quanto tempo ele retirava de sua vida?
Aquele durou o suficiente para mostrar-lhe uma cena: muitos andares abaixo do seu apartamento, decorado com cuidado e bom gosto, estava a favela. Assim era aquele bairro. Os edifícios de 15 andares colados com pequenas “manchas” de barracos.
No quintal de um deles, uma mulher dobrava o corpo diante da bacia prateada pelo sol. Vestia blusa sem mangas, decotada, vermelho-paixão. A saia estampada entrava por entre as pernas entreabertas. Os pés descalços – unhas pintadas de rubro – eram duas fortes patas de águia prendendo a mulher ao chão.
A seu lado, a lata enferrujada cheia de água. A mulher jogava água na bacia e esfregava a roupa ensaboada por uma daquelas antigas barras de sabão amarelo. Cantava com voz suave, que subia sem barreiras até as últimas janelas do edifício.
Que música era aquela? Parecia uma canção de ninar.
Como podia cantar tão bonito se estava cercada de tamanha pobreza? Como podia ser doce e feliz a voz que vinha de uma garganta sufocada em um corpo encarcerado no pequeno quintal de terra batida, entrincheirado pelos arranha-céus?
Ela nunca olhava para baixo – a pequena favela era feia e triste.
Ela só olhava para o longe, para o lindo horizonte embaçado pela névoa do dia e enfeitado de falsas estrelas coloridas, à noite.
Era bonito…
Talvez apenas porque era longe… T

Talvez por ali ela pudesse escapar para longe deste insensato mundo.
A voz da mulher abriu uma fenda na névoa do seu olhar.
O que era mais insensato: ela e sua tristeza sem nome, sua vontade de fugir sem saber para onde?
Ela e suas impossibilidades de escapar da auto-compaixão?
Ela e sua atração mórbida e medrosa pela loucura ou pela morte?
Para onde a levariam?

Ninguém que seguiu um desses caminhos provou que havia sensatez neles.
Quem já voltou da loucura não recorda lógica alguma nela. O mundo não foi melhor para si, nem para os outros que lhe rodeavam.
E quem disse que voltou da morte, por algum acidente inexplicável de apego à vida, encontrou nesta mais razão de ser que na outra, apesar de seu túnel de luz calma e tranquila.
Fechou os olhos e deixou a voz e o vento acariciarem seu rosto como um gesto, secarem as suas lágrimas como um beijo. Que estranho momento foi aquele! Tão pouco durou … mas ofereceu-lhe uma outra forma de ver a própria vida.
Ela não estava louca – nem morta.
Estava viva e podia escolher ser feliz.
Fechou a janela, abriu a porta do apartamento e saiu…

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O Lorde e a Moça…

O Lorde adorava fazer compras. Mas não as compras de lojas, em companhia de sua Princesa. Essas não. Ele detestava o entrar e sair de portas, as vitrines iluminadas, a profusão de ofertas, as remarcações. E menos ainda acompanhando uma indecisa esposa que buscava sempre um não-sei-o-que, quase nunca encontrado. Além do mais a Princesa, como já disse aqui, era plebéia. Buscava unir ao não-sei-o-que que buscava o preço mais barato. O Lorde não ia nem amarrado.

Quando ele queria comprar alguma roupa, coisa que fazia uma vez por ano, no máximo duas, ia sempre à sua loja predileta, a Montreal. Não comparava preços. Escolhia as camisas e calças de linho, sapatos mocassins de couro marrom e preto, quase iguais. Lenços brancos e cuecas brancas, sem concessões a qualquer modernidade. Enquanto escolhia, tomava um whiskezinho e um café com o amigo e dono da loja. Só comprava lá. Sempre na mesma loja, sempre as mesmas cores. Bege, branco, azul claro. Tudo muito chic e, ao mesmo tempo, com um certo descontraimento. Os ternos ele mandava fazer com um alfaiate conhecido desde sua juventude. O nome está na ponta da lí­ngua, mas já espremi a memória até a exaustão e não consegui lembrar-me. Deixa para lá… não tem mesmo importância. Ele detestava os ternos e com toda a razão. Usar paletó e gravata em Recife era um suicí­dio, principalmente numa época em que ar condicionado no carro era ficção cientí­fica! Só os usava para situações muito especí­ficas. Mas ele era um Lorde. E o que vestia lhe caia como um traje de gala. Seu passo lento e elegante lhe emprestava um charme de dandy. Pois sim…O dandy aí­ gostava mesmo era das compras de comida e especiarias. A Casa dos Frios era sua perdição. Ali comprava espécies, caviar, vinhos, queijos que minha mãe detestava porque fediam terrivelmente e empestavam a geladeira. Ele ria… E o paradoxo é que ele adorava as feiras. Muito antes do advento do supermercado, a feira era dele. Minha mãe nem ia. A Princesa era plebéia mas não suportava a bagunça dos cheiros, a cacofonia de gritos, a variedade de “quanto-vale-e-quanto-pesa?” da feira. Ela fazia a lista do que precisava e ele saia com cara de quem ia fazer o programa mais delicioso do mundo. E fazia a farra! Comprava duzentas coisas que não estavam na lista. Voltava com o carro entupido de um tudo. Peixes enrolados em jornais, cordas de caranguejos (vivos!), carne para um batalhão, frutas para abrir uma banca e vender na porta de casa. Além das permanentes: laranjas, tangerinas, bananas, maracujás, melancia… trazia também as frutas especiais que nós adorávamos: jabuticabas, jaca, pinhas, graviola, pitombas, pitangas, ingá… (tipicamente nordestina a frutinha gelada que saia da vagem verde era um manjá que esperávamos com disposição para a briga.) O dia da feira era uma festa de cores e sabores. Ele tinha seus “fregueses” cativos nas bancas das feiras. E comprava acomodado num ou noutro banco de madeira, servido de um caju amarelo e suculento acompanhado de uma aguardente “especial” para os clientes especiais. Eu recordo que adorava ir com ele à feira e passar um tempo “pajeada” por alguma filha de freguês, passeando fascinada entre as bruxas de pano, as bonequinhas de corda, a mobilia de barro ou madeira para toda uma casa de menina. Quando eu voltava, trazia sempre alguma coisa na mão e a cara de pidona. Ele dava e eu explodia de feliz. Belas lembranças essas… Então… O Lorde estava acostumado a ser atendido com carinho e consideração. E ele correspondia tratando todo mundo com atenção e cordialidade. Elogiava as moças, chamava os velhos de camaradas, tomava cerveja com os feirantes, a quem chamava pelo nome ou apelido. Era um tal de Zeca para cá, Biu para lá, Tonho, Piaba, Joelho… Em troca todos o tratavam de “doutor”. Os “fregueses” traziam-lhe o melhor coentro e cebolinho, o melhor alface, os tomates mais vermelhos, as melhores frutas de suas bancas. Contavam-lhe histórias e piadas. O Lorde se divertia tanto na feira quanto com seus amigos arquitetos e intelectuais. Ou mais! Depois veio o supermercado. Ele relutou até que finalmente convenceu-se a freqüentá-lo. Ainda levava a lista feita por minha mãe no bolso, mas voltava com o que tinha de novo nas ofertas das prateleiras. Sua alegria era trazer as novidades. Mas agora era diferente. Seu prazer já não era o mesmo. O atendimento era despersonalizado. Ele ia lá e pegava as bandejas de um tudo já prontas. E ninguém para atender. Nem banquinho de madeira, nem caju com cachaça. Um dia, enquanto ele passava as compras no caixa, a moça de cara feia e muda como uma porta, não esticava o braço para pegar nenhuma mercadoria. Ainda não existiam as esteiras móveis e ele ia empilhando as coisas umas sobre as outras no pequeno espaço diante da caixa. A moça esperava até que ele lhe entregasse na mão cada í­tem, com cara retorcida de mal humor e desprezo. Meu pai tranqüilamente fez o que ela esperava. Foi passando í­tem por í­tem. Quando terminou o último pacote, ele pagou, guardou o troco no bolso com sua calma de sempre e soltou: – Eu sei por que a senhora é assim. – Como? A moça o desafiou com cara de nojo e surpresa. – Assim tão mal humorada. A senhora além de muito feia e sem peito, tem bigode. Deve ser muito difícil sorrir e ser bem humorada.

Rindo ele afastou-se em seu passo de gato lento, deixando a mulher pasma e sem resposta. Agora ela estava ainda mais feia. Roxa e bufando de raiva, mais parecia um porco bravo! O Lorde voltou muitas vezes à feira. E só ia ao supermercado uma vez por mês, para as compras de secos e enlatados. Frutas, verduras, caranguejos, peixes enrolados no jornal continuaram a chegar em nossa casa trazidos por um Lorde nordestino, com os olhos verdes brilhando e a cara de feliz, cheirando a caju e a cachaça. *Lord Ribblesdale – John Singer Sargent. **Mulher com os Braços Cruzados – Pablo Ruiz Picasso.

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